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Caixa Preta Entrevista: Misfits (2003)


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Na segunda edição da série "Caixa Preta Entrevista", recupero uma entrevista que realizei com Jerry Only, co-fundador do Misfits, no ano de 2003. A conversa aconteceu no conservatório musical Souza Lima, em São Paulo.

É uma de minhas prediletas. Conseguiu abranger vários aspectos da fase clássica do Misfits e contou com um bem humorado Jerry Only, muito disposto a responder sobre qualquer assunto. Há depoimentos reveladores sobre a passagem do Misfits pela Roadrunner, o encontro com a antiga musa dos filmes B Vampira, detalhes de gravação e muito mais. A entrevista foi publicada na revista Rock Press e agora você pode conferi-la na íntegra.


Fale um pouco sobre o álbum Project 1950, que foi lançado pela formação atual.
Jerry Only: O Project 1950 tem a intenção de mostrar aos jovens músicos que o rock’n’roll original e aquele do Ramones e Misfits, é o mesmo tipo de música. Matematicamente é a mesma coisa. Os acordes de “Donna”, do Richie Valens, são os mesmos de “Blitzkrieg Bop”. O fato de agora os pais poderem entender a música que seus filhos estão ouvindo e, acredite, eles estão roubando os CDs dos garotos para escutá-los, é uma coisa nova. Acho que foi uma ótima ideia. O disco tem a participação de grandes músicos também. É um grande álbum. Esse CD saiu pela Misfits Records.

Alguma possibilidade de distribuição no Brasil? 
Sim, sem dúvida. Isso deve acontecer em todos os países da América do Sul onde estivemos excursionando e o Brasil está incluído. Estivémos no Peru e devemos ser distribuídos no Chile também. Estamos sendo distribuídos pela Rykodisc (nos EUA) e se eles não atenderem o Brasil, faremos isso por conta própria. Mesmo que eu tiver de trazer os discos pra cá e vendê-los aos garotos.

O que você e o Doyle fizeram entre 1983 e 1996, quando o Misfits esteve parado? Ouvi dizer que vocês tinham uma banda chamada Kryst the Conqueror.
JO: Sim, nós tínhamos. Nós também projetamos e construímos guitarras, baterias e acessórios, como correias de guitarra e até rebites pra jaquetas. Algumas de nossas guitarras estão sendo fabricadas agora pela BC Rich. Durante aquele tempo, enquanto construíamos os instrumentos, compusemos um monte de riffs. O álbum é bem metal, bem Iron Maiden. Juntamos esses riffs que escrevemos e colocamos no álbum, então é mais um workshop de guitarra do que uma produção de fato. De qualquer forma, naquela época o Danzig estava no mercado e as pessoas acreditavam que ele fosse o Misfits. E o lance dele era bem satânico, por isso chamamos a banda de Kryst the Conqueror, para mostrar aos garotos que se o ponto de vista do Glenn Danzig era bem negativo, o nosso era positivo. Era mais uma declaração daquilo em que acreditávamos do que uma banda de verdade. Nós nunca tocamos ao vivo. Existem 48 faixas gravadas e a Misfits Records deve lançar esse material algum dia.

Marky Ramone: (interrompe) E como ele sabia disso?
JO: (rindo) Eu não faço ideia!

Quando se pensa no Misfits, logo vem à mente a imagem do Crimson Ghost, que se tornou praticamente um ícone pop…
JO: Com certeza!

Quem teve a ideia de usá-lo como símbolo da banda?
JO: No nosso primeiro disco, que gravamos quando tínhamos 18 anos, havia músicas como “Last Caress”, “Attitude”, “Teenagers From Mars” e por aí vai. Trata-se do álbum Static Age. Na época, Nova York era bem artística, bem avant garde. Todo mundo queria ser sombrio e sinistro, mas nada interessante de se ver. Então, fizemos um cartaz para o Max Kansas City (importante casa de shows da época) com a imagem do filme “Teenagers from Mars” (1) e realmente gostamos do jeito que ficou. Ainda usávamos o primeiro logo do Misfits, não o atual. Nós olhamos para aquilo e dissemos: “Uau! Tem tudo a ver com a gente!”. Porque todos nós gostávamos de filmes de terror, de monstros, então nos habituamos com a imagem do Crimson Ghost. Desde aquele dia, ela ficou associada a nós. Fizemos camisetas e coisas assim. Nas convenções de camisetas, você tem os Stones, Jimi Hendrix, Pink Floyd, Jim Morrison e aquela caveira (Crimson Ghost) como as mais vendidas, então, enquanto imagem, nos tornamos ícones pop. Aquela imagem pode ser vista nas ruas de todo o planeta. É uma grande honra para nós. O mais interessante é que não há outra identificação (além da caveira) e as pessoas já sabem o que significa. Me faz sentir que criamos uma coisa muito grande. Como o “S” do Superman, sabe?

É verdade. E vocês registraram a imagem depois que ela ficou associada a vocês?
JO: Sim. Nós fizemos a ilustração a traço e patenteamos tudo. Mas liberamos para artistas usarem de graça. E para pessoas como, por exemplo, o medalhista de prata (nas olimpíadas de inverno 2002) Danny Kass, que usou a imagem da caveira em seu snowboard e em suas roupas. Nós cedemos para algumas pessoas que nos solicitam. Não patenteamos para ter lucro e sim, por proteção.

Já que falamos do personagem Crimson Ghost, gostaria que você nos contasse como foram seus encontros com as celebridades dos filmes de terror. Nos anos 80, o Misfits posou para fotos com a musa dos filmes B Vampira e nos 90, teve um clipe dirigido pelo lendário cineasta George A. Romero.
JO: A Vampira tem uma história muito triste. Ela foi namorada do James Dean. Pouca gente sabe disso, mas quando James Dean morreu, Vampira era namorada dele. Ela teve uma passagem muito breve por Hollywood. Depois disso, ela esteve na batalha por muitos anos. Em 1983, quando saiu o álbum Walk Among Us, nós fizemos uma sessão de autógrafos na Vinyl Fetish (tradicional loja de discos de Los Angeles). Aí eu perguntei para um sujeito: “Hey, você que é daqui, sabe mora a Vampira?”. Ele disse: “Por incrível que pareça, ela vive a três quadras dessa loja!”. E ela morava numa casa pequena e caindo aos pedaços. Realmente precisava de uma reforma. Fomos até lá e, pela janela, vimos alguém se movendo. Como ninguém atendia a campainha, escrevemos um bilhete e colocamos na janelinha por cima da porta: “Estamos dando autógrafos hoje na loja tal. Por favor, venha nos ver. Fizemos uma música para você”. Mais tarde naquele dia, ela apareceu na sessão de autógrafos com suas unhas postiças e tudo. Foi uma grande honra. Com relação a George Romero, nós queríamos que ele dirigisse nosso vídeo (da música “Scream!”) e ele jamais tinha dirigido um clipe de rock antes, então ele veio a mim e disse: “Que coincidência! Estou precisando de uma banda para o meu novo filme (“Bruiser”, 2000). Se vocês participarem do filme, eu dirijo o vídeo de vocês”. Foi o que aconteceu. Inclusive meus filhos e alguns amigos acabaram aparecendo no clipe. Trabalhar com George Romero é incrível. Já tínhamos participado de filmes antes e normalmente você chega no set de gravação às 6 da manhã e nada acontece até à meia-noite. Você fica andando pra lá e pra cá sem fazer nada. George, ao contrário, trabalha como uma metralhadora: “Filme isso, filme aquilo”. E eu pensava assim: “Mas esse cara está maluco? Pra quê ele vai precisar disso?”. Mas quando você vê o filme pronto, de repente aquilo tudo faz sentido. É incrível o jeito como ele trabalha. Eu tenho o maior respeito por George Romero. “A Noite dos Mortos Vivos” foi feito com apenas 100 mil dólares e é um dos filmes de terror mais assustadores já realizados. Não se discute. E ele conseguiu isso com apenas 100  mil dólares que arranjou emprestado com alguém... Isso nos mostra que hoje em dia temos coisas como “Star Wars”, que custam 50 milhões de dólares para ser feitas e nem sequer chegam perto. Ou seja, o importante não é o quanto você tem para gastar e sim, quão grande é a sua visão. Acho que, com nossa banda, atingimos isso também, porque agora temos nosso próprio selo e não é porque quiséssemos ter um, mas estávamos numa gravadora que não fazia as coisas direito (está se referindo à Roadrunner). O Misfits ainda está bem vivo, mas nenhuma gravadora estava fazendo nada por nós e agora estamos indo muito bem com muito pouco.

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Gerald Caiafa (Jerry Only)

Quando você foi entrevistado pela MaximumRocknRoll em 1996, tinha acabado de ganhar na justiça os direitos do nome Misfits. Na época, você dizia que seu plano para o futuro da banda era fazer tudo de forma independente, mas vocês acabaram assinando com a Geffen e depois com a Roadrunner. Por que?
JO: Vou te dizer o porquê. Naquele tempo, a Geffen era uma grande gravadora. Eles tinham Guns N' Roses e White Zombie. Ambas as bandas estavam sentadas em casa sem fazer nada. Na minha opinião, eles tinham essa máquina de rock’n’roll e ela estava ociosa. Eu pensei em deixar o Misfits numa companhia como a Geffen, que tinha todos os recursos para acelerar o processo e levar nosso material até os garotos. No meu modo de ver, era uma forma de abreviar as coisas para chegar até onde eu queria. Mas o que aconteceu com a Geffen, com todo respeito ao Rob Zombie, é que eles se apropriaram de todas as ideias do Misfits e as colocaram no álbum Hellbilly Deluxe. Até mesmo o artista que pintou a capa. O Rob Zombie me ligou pedindo o número dele e é o cara que fez nossa capa também! O lance é que minhas ideias estavam certas, porque ele vendeu de 1,5 a 2 milhões de discos e deveríamos ter sido nós, porque American Psycho é melhor que o álbum dele. Desculpe, mas é um fato. E a Geffen queria saber o que eu achava, quais eram meus conceitos. Eles pegaram todas essas informações e se saíram muito bem com elas. Então decidimos que estávamos fora. Fomos para a Roadrunner Records e na época eu estava tendo problemas com nosso vocalista e baterista. Eles só estavam enrolando erva e não faziam o que deveria ser feito, eram muito preguiçosos. E tínhamos chegado num ponto em que precisávamos lançar um novo disco. Ou eu tirava 100 mil dólares do bolso para gravar o álbum ou a Roadrunner o financiava. Pensei: “O que eu faço? Nem sei se esses caras (Michale Graves e Dr. Chud) vão continuar na banda e realmente não tenho toda essa grana. Se não der certo, tudo vai cair em cima de mim”. E a Roadrunner me contactou para fazermos o disco. Naquela época eles tinham o Type O Negative, Slipknot, bandas que estavam na nossa praia, não que fossem iguais a nós, mas parecidas. Assim eu pensei que, por saberem quem éramos, nós poderíamos fazer nosso trabalho em paz. A Roadrunner antecipou 200 mil dólares e usamos tudo na gravação do álbum. Tudo. E depois disso eles não fizeram absolutamente nada…Não fizeram nada de nada! Nem um anúncio sequer!! Nada mesmo! O que aconteceu foi que 150 mil fãs do Misfits compraram o CD e eles (Roadrunner) ainda me diziam que eu lhes devia dinheiro! Ele ganharam, deixa eu ver, com 150 mil CDs, pelo menos 1 milhão de dólares. E me anteciparam 200 mil. Quando me perguntaram sobre gravar outro álbum, eu respondi: “Vou dizer uma coisa: eu antecipo 200 mil dólares, vocês gravam um CD, eu ganho 1 milhão e depois ainda cobro de volta. O que vocês acham?”.Se passaram uns dois anos até eles perceberem que eu tinha razão. Eu disse a eles: “Estou tocando com o Marky e com o Dez agora. O Ramones tem umas 250 músicas, o Misfits umas 60, o Black Flag mais umas 60. Ou seja, um repertório de 400 músicas para escolher e tocar todas as noites! Eu não preciso de um álbum”. Um ano depois eles vieram até mim e disseram para esquecermos tudo (refere-se à suposta dívida). Então eu peguei todas as minhas gravações antigas com Michale Graves e Chud e fiz um pacote chamado Cuts from the Crypt. Demos a eles todas as sobras de estúdio e eles ficaram com um disco novo de graça, só para sairmos de lá e darmos aos garotos mais música. Isso evitou pirataria, deu aos fãs a chance de ter um outro álbum do Misfits, me permitiu sair da Roadrunner e não precisar contratar advogados outra vez pra sair de uma situação ruim (menciona isso por causa da briga na justiça com Glenn Danzig). Eu não quero passar minha vida envolvido com advogados ou em tribunais. Isso não é música pra mim. Música é poder dar uma entrevista como essa ou sair pra tocar para os garotos. Depois disso tudo, eu jurei que por melhor que fosse a proposta, eu não assinaria com uma gravadora de novo. Na verdade, eu tive uma oferta que no papel era muito boa, poderia ter funcionado, mas… Estou escrevendo um livro já faz 3 anos e fala sobre sobreviver nesse ramo sem ter que confiar em gravadoras, promotores de shows, etc. O mais importante é você perceber que qualquer coisa que te ofereçam, eles podem não dar a você depois. E aí sim você estará encrencado! Foi isso o que aconteceu conosco. Agora com a Misfits Records, com o CD Project 1950, estamos indo muito bem. O disco entrou no posto mais alto das paradas que o Misfits jamais esteve (o CD estreou em 2º lugar na parada independente da Billboard). Temos até Ronnie Spector no disco, aquela de “Be my Baby”. Não sei se você a conhece, mas é uma deusa do rock! Enfim, estamos muito felizes agora. Quando perdemos Joey e Dee Dee Ramone, eu percebi que o tanto de dinheiro que você ganha não é importante. O que importa é o quanto de…eu até diria “amor”, mas ficaria meio veadinho (risos). O que vale é o quanto você significa para as pessoas e não quantos discos de ouro você tem na parede. Tenho orgulho de poder mostrar para as pessoas que sobrevivemos com nossa música, que essa banda ainda está viva, apesar da Geffen e da Roadrunner Records. Temos nosso próprio selo agora e o Fiend Fest, nos EUA. Estou realizando todos os sonhos, ainda que eu tenha que ir trabalhar todos os dias. Prefiro ter um emprego e ser feliz, do que morar numa mansão e ser infeliz. Encontrei com a Alanis Morrisette no aeroporto ontem e perguntei: “Você ainda está no selo da Madonna, a Maverick Records?”. Ela disse que sim, mas que não tinha muitas opções. Perguntou em qual gravadora estávamos e eu respondi que éramos independentes agora. Alanis comentou: “Foi uma decisão inteligente!”. Acho que isso resume bem a história.

Ainda falando sobre gravadoras, por que o CD Walk Among Us não fez parte do box-set lançado pela Caroline em 1996? Eu sei que você não estava diretamente envolvido, mas saberia explicar?
JO: Bem, eu estive envolvido com o projeto, mas não oficialmente (sorri). Walk Among Us pertence ao catálogo da Warner Brothers, por isso não saiu na caixa. Ainda assim, bastava um telefonema da Caroline e eu acho que teriam consigo uma permissão, um acordo. Mas nem para pegar o telefone e fazer isso! Eu pretendo adquirir os direitos do Walk Among Us algum dia, porque esse disco está esquecido no catálogo da Warner. Eu sou pago ocasionalmente pelas vendas do álbum e percebo que o disco está vendendo bem menos do que deveria. E esse álbum é um clássico, o melhor do Misfits!

Você não acha que Static Age é a obra-prima do Misfits?
JO: É, o Static Age… Mas a razão pela qual eu gosto mais do Walk Among Us é porque no primeiro álbum nossa imagem ainda estava muito associada ao conceito de “Teenagers from Mars”. Em Walk Among Us tinha todo o visual e o som. “Halloween”, “Vampira”, “Hell Breaks Loose”, que tal isso? Esse disco personificou a imagem, a sensação e a atitude, entende? O pacote completo. Static Age é genial, mas estava apenas esboçando nossa identidade. Mas você está certo sobre esse álbum. Nós o gravamos em 1978 e eu tinha acabado de fazer 18 anos. O disco ficou no armário por 18 anos, até que a Caroline o lançou (primeiro no box-set, depois individualmente). Quando eu o ouvi de novo, até chorei. Eu pensei: “Não acredito que gravamos isso há 18 anos! Esse álbum é o máximo!!”. Tem “Last Caress” e “Attitude”. O Metallica gravou uma delas e o Guns N' Roses gravou a outra. Só canções clássicas (empolga-se): “Hybrid Moments”, “Some Kind of Hate”…  

“Theme for a Jackal”…
Sim, “Theme for a Jackal”! Glenn chegou pra mim e disse: “Ouça esse poema: ‘Dry drink on a corner..’”. E eu perguntei: “Que tipo de música você quer pra isso?”. Ele disse que queria algo em Si. Aí eu escrevi aquele pedaço (canta a melodia) e o repetimos pelo resto da música.

 Essa música é um bom exemplo de como você escreveram coisas bem diferentes durante a carreira. Punk rock, metal, rockabilly… 
 Eu sei. “American Nightmare” (cita essa faixa porque é um rockabilly típico) é uma das melhores canções do mundo e nós só a tocamos uma única vez! Veja só, estávamos no estúdio e Glenn disse: “Eu tive uma ideia para um rockabilly”. Pedi que ele a mostrasse pra mim e então, pelo vidro na sala de gravação, eu gritei: “Googy, me siga. Quando eu tocar, você me acompanha” (refere-se ao baterista Arthur Googy). Gravamos os 90 segundos da música numa tacada só e nunca mais a tocamos outra vez! Pra mim, foi um daqueles momentos de genialidade criativa. Nós somos assim e é isso o que fazemos. Ouvi histórias dos Beatles, quando eles estavam fazendo o filme “A Hard Day’s Night”, e pediam uma música pra eles. Eles iam pra casa à noite e voltavam de manhã com uma canção como “A Hard Day’s Night” (cantarola o refrão da música). Não estou dizendo que éramos tão talentosos assim, mas éramos as pessoas certas, na hora certa e querendo, querendo muito fazer tudo aquilo! É por isso que eu acho que as gravadoras desperdiçam tanta coisa. Eles não queriam colocar “Helena” no American Psycho. “Ah, não gostamos dessa música, é muito metal” (imita a voz de algum executivo de gravadora). Muito metal?! Aí o Doyle apareceu na reunião seguinte com um taco de baseball e disse: “Vamos colocar aquela música no disco ou não?” (gargalhadas)

O que o Doyle anda fazendo atualmente? Por que ele não quis participar do Misfits M25?
JO: Doyle está bem. Ele participou do M25 no começo, mas aí se divorciou, casou-se novamente e teve uma filha. Agora ele está ajudando meu pai nos negócios, porque ele anda meio doente, mas deve ser operado em breve e aí ficará tudo bem. Eu vejo o Doyle todos os dias, inclusive foi ele quem me levou ao aeroporto quando vim para cá. Olha, Doyle sempre fará parte do Misfits. Inclusive estamos começando a escrever um novo álbum juntos. É que o Misfits M25 me deu a oportunidade de pôr em prática meu projeto anos 50 e o Marky e o Dez estão muito envolvidos nisso.

Uma coisa que me impressiona no material que vocês lançaram entre 1977 e 1981 é a gravação e o timbre dos instrumentos. A sonoridade que vocês conseguiram naquela época é muito peculiar. 
JO: É verdade. Muita gente também gosta das gravações originais. A razão disso é que, à época, não tínhamos um grande orçamento e fazíamos o que dava com o que estava à disposição. Gravávamos 4 ou 5 músicas num dia e voltávamos mais tarde para mixar. Naquele tempo, muito do material era gravado em 16 canais e isso dava um pouco mais de dinamismo do que gravar em 24, porque nesse caso os canais estão mais próximos. Eu gosto muito das gravações originais, mas eu sempre esperei mais do som, algo mais encorpado, mais pesado. Mas agora ouvimos bandas como Slayer ou Pantera e não sabemos se era por aí que deveríamos ter seguido, sacou? Eu fiquei muito satisfeito com o American Psycho e também com o Famous Monsters. Cada disco tem sua própria identidade. Quem sabe a gente não volte com o Glenn (Danzig) e acabe escrevendo material novo…

Você antecipou uma pergunta que eu faria, que é justamente sobre a possibilidade do Misfits voltar com o Danzig. Como é a relação entre vocês hoje em dia?
JO: Olha, ele está na batalha. Pra ser sincero, a carreira dele está numa encruzilhada. Ele ainda está com a cabeça naquele lance death metal anos 80 e quem se importa com isso hoje em dia? Ninguém está nem aí. É uma situação delicada, porque ele precisa amadurecer como indíviduo, para chegar e perceber que tivemos bandas como Beatles, Ramones, Clash, enfim, pessoas que já se foram. Essas nunca voltarão. E para ser honesto com você, não se fez muita na música desde então. Dá para contar nos dedos de uma mão as grandes bandas que surgiram desde aquela época. Nunca mais apareceu algo que realmente me nocauteasse, para o qual eu dissesse: “Uau!! Isso é fantástico!”. Eu gosto do primeiro disco do Slipknot, achei muito bom. Já o segundo álbum deles não é tão intenso quanto o  primeiro. Sem querer ser desrespeitoso com eles, claro. O que quero dizer é que, em muitos casos, uma banda tem a vida toda para gravar o primeiro disco, para concebê-lo, sabe? Depois disso, você está na estrada, está tocando…é difícil voltar. Chamam isso de “a maldição do segundo ano”. O segundo álbum é escrito em quartos de hotel, aeroportos… Enfim, é aí que temos que entender como é bom fazer as coisas a seu tempo, juntar material e trabalhar em grupo. Era assim que fazíamos com Glenn no início. Nossas canções eram ótimas porque todos nós tínhamos ideias. Como o começo de “Return of the Fly” ou “Astro Zombies”. Eu compus aquilo. Glenn não compôs tudo como dizem, mas eu não me importo. O importante é que essa obra exista! Quando voltamos com Graves, Chud e Doyle, para gravar o American Psycho, nós ensaiamos durante 6 meses, por 4 ou 5 horas diariamente. Tentamos escrever músicas melhores e tínhamos 50 delas para selecionar só 18. Ou seja, quase como se tivéssemos que escolher uma música entre cada três. Isso te dá uma grande variedade e grandes opções também. Às vezes pegávamos parte de uma música e juntávamos com o final de outra. “Helena” (do CD Famous Monsters) é uma delas! São 3 músicas diferentes que se tornaram uma só. Quando juntamos foi como mágica! O lance é que composição deve ser coletiva, todos podem ter ideias. Foi isso que o Glenn perdeu quando começou com seus projetos Samhain e Danzig. Ele fazia tudo sozinho.

Não sei se você respondeu exatamente a pergunta, mas…
JO: OK, vamos lá… Veja o que aconteceu como o Marky (Ramone), por exemplo. Quando o vi ao vivo pela primeira vez, pensei: “Temos que ter esse cara na banda”. O lance é que, estando no Ramones, não dava para chamá-lo. Mas tudo tem seu tempo e razão de ser. Eu tive que passar por toda a merda que eu passei para tornar-me quem eu sou hoje, para ser uma inspiração para os garotos. Você tem que estar convicto para ficar limpo. E o Marky tinha que estar com o Ramones. Quer dizer, a gente tem que ter paciência e entender que Deus tem sua maneira de fazer as coisas. O mesmo se aplica à Glenn. Nós o teremos de volta. Eu te garanto isso! Quando é que é a questão, mas isso não importa. Pode ser daqui a 5 ou 10 anos, mas não interessa, porque estarei aqui e estarei preparado. A melhor coisa que me aconteceu foi que Doyle precisou de um tempo e eu tive que assumir os vocais quando o Graves saiu fora. Minha habilidade técnica foi daqui (gesticula) lá pra cima. Agora estou fazendo o vocal principal! Eu posso não ser um Elvis ou um Pavarotti, mas agora que estou cantando todas as noites com esses caras (Dez e Marky), eu serei o melhor músico número 2 desse ramo. Ou seja, o melhor baixista que faz vocais. Então, quando chegar a hora de voltarmos (com Danzig), estaremos melhores que se tivéssemos ficado juntos na banda a vida toda. Estou muito satisfeito agora. Eu estou trabalhando na minha performance, no meu vocal e na minha condição física. Espero que “esse Misfits” seja o melhor possível. E acho que os garotos estão gostando.  

Parece que você não gosta muito da banda Danzig. Mas o Samhain até que gravou algumas coisas que lembram um pouco o Misfits, não?
JO: Sim, mas ainda é meio bluesy. Tipo aqueles “dam, dam, dam, dam” (inventa uma melodia). Não é ruim, sabe? Mas não se pode comparar com o que fizemos. “Teenagers from Mars” ou “I Turned into a Martian” são hinos! A mesma coisa quando você ouve “Rock’n’Roll Radio” ou “Teenage Lobotomy” do Ramones. São hinos também.



Você acha que o Earth A.D. ajudou a delinear a sonoridade do thrash metal?
JO: Bem, o disco Earth A.D. foi a pedra fundamental para o death metal, thrash metal e outros. Mas nós não inventamos aquilo! O thrash veio do Necros e do Negative Approach. Essas bandas abriam pra nós e eram todas da região de Washington DC, sabe? Só que tocavam assim… muito thrash. Nós pensamos: “Se liga só nisso?!”. Não havia melodia por cima daquilo, era só gritaria. Mas essas bandas, as bandas que uivam, sim as que só sabem uivar, são boas, mas só se você as vir ao vivo. Tirando isso, ninguém vai dar um rato morto por essas bandas! As pessoas vão se lembrar dos Beatles, Ramones e de nós. Porque nós pegamos “Green Hell” e colocamos uma melodia por cima. Fizemos isso com “Death Comes Ripping” também. Dá pra cantar “Death Comes Ripping” no chuveiro! Isso sim é música. Caso o contrário, por que precisaríamos de guitarras? (gargalhadas)

O que você acha que teriam gravado depois do Earth A.D. se a banda não tivesse acabado?
JO: Esse é o problema com o Earth A.D.. Era muito à frente do tempo! A gente não sabia por onde seguir e a tensão era grande na banda, porque nós havíamos nos superado, tínhamos chegado a um ponto onde não sabíamos mais o que fazer. Foi aí que começamos a discutir. A versão de “Mommy” nem tem letra, é só “da-da-da-da” (imita a melodia). Metade das músicas daquele disco nem tinha letra! A gente não sabia como encaixar as palavras. Era mais do que poderíamos fazer. E aí a banda acabou. Hoje você vê que aquele álbum talvez estivesse uns 20 anos à frente do tempo. Se um dia voltarmos (com Glenn Danzig), gostaria de gravar um Earth A.D. parte 2, usando bateria com dois bumbos e tudo. Digo isso porque o maior avanço tecnológico desde Earth A.D. foi o jeito como se grava e se toca bateria. Guitarristas e baixistas nunca mais fizeram nada de especial, vocalistas são vocalistas, mas o jeito como se toca bateria chegou a níveis extremos. Gostaria de incorporar isso num disco do Misfts, porém com melodia. Imagine um Slipknot com melodia.

Que tipo de música você ouve em casa?
JO: Eu trabalho o tempo todo, então não ouço qualquer coisa. Exceto a banda do meu filho, que eu “tenho” que escutar (risos). Não sobra mesmo muito tempo, porque tenho meu trabalho. E isso me me ajuda a…como posso dizer? Me ajuda a não sofrer a influência dessa vida de rock’n’roll, sabe?  Quando volto pra casa depois de excursionar, não quero trazer isso na bagagem. Toda vez que passo um mês em turnê, volto e tenho dois meses de problemas pra resolver! De certa forma, isso (não ouvir tanta música em casa) me mantém puro. Me sinto bem assim.

Dez Cadena (interrompe): Pode parecer estranho, mas eu ouço de tudo. De punk rock a clássico, jazz e música pop. Depende do momento. Gosto muito de poder ver uma banda ao vivo. Se eu puder assistir a uma banda antes de subirmos no palco, é o que eu mais gosto. Venho de uma família musical, meu pai produzia discos de jazz, então cresci com música ao meu redor. Ele (Jerry Only) não vai levar em consideração qualquer música, porque trabalha numa oficina com máquinas, na parte de vendas, e com pessoas que não ouvem música…

JO: Calma lá, calma lá!… (gargalhadas) Eu me lembro que David Bowie era amigo do Lou Reed, do Velvet Underground, e o convenceu a assinar um contrato com a RCA e Lou acabou ficando bem insatisfeito com isso. Quando faltavam dois álbuns para terminar o contrato, ele gravou um disco chamado Metal Machine Music e esse é o pior álbum de todos. É só “beep!”, “poing!”, barulho o tempo inteiro (risos). E o disco é duplo, com os quatro lados assim!! Então ele disse: “Aí está! Já terminei o contrato!”. Essa música ainda está na minha mente! Quando eu era garoto, tinha uma loja na qual, por 1 centavo de dólar, você ficava sócio e ganhava 10 discos. E eu vi esse e pensei: “Oh, Lou Reed!”. Quando cheguei em casa e ouvi o disco, disse: “Que porra é essa?!”. Então eu percebi que máquinas podem ser música… (brinca com o fato de trabalhar com o barulho de máquinas). Talvez tenha sido só uma experiência ruim. Desculpe, Dez (risos).

Qual foi o presente mais bizarro que você já ganhou de um fã?
JO: Um crânio de bebê! Era do tamanho de um limão ou menor. Isso foi na época em que morávamos em Lodi (New Jersey). Tínhamos uma caixa com as coisas que os fãs nos mandavam pelo correio. Uma vez alguém me mandou ossos de mão! Ah, e Tesco, do Meatmen, me enviou uma tarântula morta. Cheirava muito mal! Quando abri o pacote, pensei: “Meu Deus, que coisa é essa?!”. E era uma aranha morta. Esvaziei uma caixa com os EPs de Night of the Living Dead, coloquei a aranha lá dentro e a cobri com um spray. Mesmo assim, aquilo continuou cheirando mal por todo o dia! (risos)

Jerry, responda rápido: quais são as 5 músicas do Misfits que você mais gosta e seus 5 filmes de terror prediletos?
JO: OK, as 5 músicas são: “Astro Zombies”, “American Nightmare”, “American Psycho”, “Last Caress” e “We Are 138”. Os 5 filmes são, vejamos, “The Bride of Dracula (“A Noiva do Drácula”, 1974), “The Wolf Man” (“O Lobisomem”, 1941), “The Phantom of the Opera” (“O Fantasma da Ópera”, 1943) e eu adoro “The Thing” (“O Enigma de Outro Mundo”, 1982), de John Carpenter! Me lembro que fomos ao cinema ver esse filme junto com os caras do Necros, então era aquele bando todo comendo pipoca e dizendo: “Você viu isso? Você viu aquilo?” (risos). Eu gosto de coisas originais e que são feitas de um jeito a tornarem-se chocantes.

O Misfits já teve material desenhado por gente como Dave McKean, da série de quadrinhos Sandman, o cultuado ilustrador Pushead e até Butch Lukic, do desenho animado Batman, da Warner. Se você pudesse escolher algum artista, vivo ou morto, para desenhar a próxima capa do Misfits, quem seria?
JO: Talvez seria o Boris Vallejo (2), mas a Roadrunner conseguiu estragar isso também. Nós até pagamos pelo trabalho dele e a ilustração seria o Doyle segurando o Sable, do WWF (3), atrás do fogo e uns macacos saindo das chamas com a Estátua da Liberdade ao fundo! Ele até me mandou um esboço, mas a Roadrunner foi um tremendo pé no saco e ele me ligou dizendo que não trabalharia mais pra eles. Eu até compraria a pintura, mas mesmo assim ele não quis fazer. Então tive que pegar um outro artista. Há outro cara que eu gosto, e acho que ele fez a pintura de Dorian Gray no filme “O Retrato de Dorian Gray”, mas não lembro seu nome agora (4). Vi algumas obras dele num museu de arte em Chicago. Sabe que eu estou escrevendo um livro e tive uma ideia para a capa: meu rosto, metade esqueleto e metade “humano”. Um dia desses no Hard Rock Café, da Cidade do México, um rapaz veio até mim e me deu uma pintura. Quando eu olhei, logo disse: “Meu Deus, era exatamente isso que eu tinha em mente para a capa do meu livro! Posso usá-la?”. E ele disse que sim, gostou da ideia que capa do meu livro fosse creditada a um desenhista mexicano.

Qual é a importância do merchandise para vocês? Isso ajuda que vocês vivam da banda?
JO: É o único de jeito de conseguirmos isso. Se vendermos 200 mil discos, tudo bem, mas a questão é que não vimos o dinheiro da Geffen ou da Roadrunner por vender discos. Ganhamos algum dinheiro da Caroline, mas não é muito. Provavelmente equivale a um salário comum. Minha filha estuda numa faculdade em Boston que custa mil dólares por semana! E isso é mais do que eu ganho no meu emprego, então se eu não tivesse o merchandise… Veja só, o Project 1950 foi gravado com dinheiro de merchandise.

Quanto items vocês já licenciaram com a marca Misfits? Me parece que entre as bandas, digamos, alternativas, ninguém chega perto de vocês nesse quesito.
JO: É verdade. O KISS provavelmente vende mais em volume, mas nós fazemos as coisas com um padrão de qualidade tão elevado e com ideias tão incríveis! Nossas miniaturas foram escolhidas como os action figures do ano, ainda que tenhamos até perdido dinheiro nisso. Tento fazer tudo com um nível que os outros apenas almejam como objetivo. Nossos bonecos, os melhores! Nossas guitarras, as melhores! As embalagens de nossos CDs, as melhores! Quero que vejam isso e digam: “Uau! Quero ter a qualidade do Misfits!”. Talvez tudo isso não signifique muito agora, mas no curso dos anos, quem sabe? Acho que um dia estaremos no Rock’n’Roll Hall of Fame. Não pela quantidade de discos que vendemos, mas pelo jeito como fazemos as coisas. O pacote completo.

  1. É provável que ele esteja se referindo ao filme “The Crimson Ghost”, de 1946, onde o personagem apareceu nas telas pela primeira vez. Não consta que exista um filme chamado “Teenagers from Mars”.
  2. Famoso ilustrador peruano que imigrou para os EUA no fim dos anos 60 e tornou-se famoso por seus trabalhos que exploram temas de fantasia e ficção científica.
  3. Sable é o nome de um lutador e WWF é a mais popular liga de luta-livre americana.
  4. Trata-se do pintor Ivan Le Lorraine Albright. Esse artista pintou os 4 quadros que mostram a transformação de Dorian Gray na versão cinematográfica de 1946, dirigida por Albert Lewin e ganhadora de 3 Oscar.

D.R.I. e o crossover




Crossover: substantivo

Na música popular:
  1. o ato de migrar de estilo, normalmente com a intenção de obter apelo comercial junto a um público mais amplo;
     
  2. música que atravessa estilos, compartilhando atributos de vários outros gêneros musicais e, portanto, muitas vezes atingindo uma maior audiência.
O dicionário não mente: as primeiras bandas punks americanas a incorporar elementos do thrash metal, o fizeram por questão de sobrevivência. E o fato desse subgênero musical chamar-se "crossover" não é mero acidente.

Na próxima terça-feira, dia 22, um dos fundadores desse estilo se apresentaria no Brasil. A turnê, que incluiria datas no México, Chile e Argentina, terminou cancelada por problemas com as agências organizadoras. O grupo em questão é o D.R.I., sigla para Dirty Rotten Imbeciles, fundado em 1982 na cidade de Houston, Texas. Eles definiram os pilares do gênero e também o batizaram, através do emblemático álbum "Crossover", de 1987.

Mas antes de falar da cena criada a partir da fusão desses estilos musicais, é importante conhecer o contexto em que ela surgiu. Em depoimento ao jornalista Marc Spitz, o vocalista do Bad Religion, Greg Graffin, revelou: “Por volta de 1985-86, não existiam [nos EUA] mais bandas de punk rock na definição clássica. Havia pouquíssimos selos punk. Esse era o contexto da época e também uma das razões pelas quais o Bad Religion foi considerado revigorante quando lançou o álbum ‘Suffer’. Na Alemanha, nos chamavam de salvadores da chama punk e tocávamos para plateias de mil pessoas, enquanto nos EUA tínhamos sorte se conseguíssemos tocar em um clube minúsculo de Orange County…”.

O crossover surgiu nessa época e, mais do que uma experiência sonora, representou o esforço de bandas hardcore/punk em se aproximarem dos fãs de metal. Musicalmente, essa mistura só deu caldo porque trabalhou com estilos que eram primos entre si, pois que o thrash metal, originalmente, já havia bebido na fonte de Bad Brains, Black Flag e companhia.

Não é fácil definir o disco que trouxe a primeira gravação de crossover. “Animosity”, do Corrosion of Conformity, lançado em 1985, é citado por muitos como a pedra fundamental do estilo. Nos anos seguintes, várias bandas embarcaram nessa sonoridade criada a partir da velocidade do hardcore e dos arranjos, riffs e solos de guitarra herdados do thrash. Suicidal Tendencies, Crumbsuckers, English Dogs, Agnostic Front, Gang Green e Cryptic Slaughter são alguns dos grupos que promoveram essa fusão. E o fato de todas essas bandas serem egressas da cena punk só confirma outra vez o que diz o dicionário.

Outro indício que o público-alvo desse subgênero eram os adeptos do thrash é que os principais álbuns de crossover foram editados por gravadoras como Metal Blade e Combat. O hardcore mudava para sobreviver e era vendido em nova embalagem a plateias metaleiras.

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D.R.I. em 1987
O  D.R.I., autor do disco que encapsulou todos os parâmetros do estilo, é a banda que terminou mais identificada com o crossover. Gravaram apenas outros três álbuns desde 1987, e todos seguindo a cartilha do gênero, com maior ou menor sucesso.

Olhando retrospectivamente, o crossover fechou o círculo que conecta dois estilos musicais nascidos nas ruas e avessos às fórmulas existentes. Tanto thrash quanto hardcore sobreviveram à margem do rock comercial, com bandas excursionando em velhos furgões, tocando em espeluncas e dependendo da divulgação de fanzines e programas de rádio malditos. Os grupos oriundos do punk expressavam essa dura realidade com letras críticas ao 'establishment' e influenciaram parte do thrash metal. Sacred Reich, Vio-lence e Megadeth, entre outros, adotaram também um discurso ácido e repleto de críticas sociais.

Essa troca de influências explica a existência de álbuns como “Speak English or Die”, do S.O.D., e também os elementos punk que contaminaram o som dos novaiorquinos Anthrax e Nuclear Assault.  E como em toda onda, houve também aqueles pegaram o trem em movimento e já nasceram tocando crossover – casos de Mucky Pup, Excel e Ludichrist.

E por que teria o crossover passado anos como um fóssil underground, até ser redescoberto pela nova geração? Talvez tenha sumido em decorrência da curva descendente do thrash, que perdeu a popularidade na virada para a década 90. Agnostic Front e English Dogs, por exemplo, descartaram os elementos de metal e reassumiram a sonoridade punk/HC depois de uns anos. Já o Corrosion of Conformity foi mais longe: explodiu a ponte e terminou metido no stoner e southern rock.

Quase três décadas após seu auge, o crossover experimentou um 'revival' proporcionado pela redescoberta do thrash. O gênero passou a produzir novos grupos que decalcam não apenas o som, mas também a estética e a moda de rua daqueles tempos – bandanas, bonés de aba invertida, bermudas coloridas e tênis de skate.

Difícil mesmo vai ser gravarem discos tão originais quanto esses abaixo.

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Discografia básica do crossover:

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Animosity – Corrosion of Conformity (1985)

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Speak English or Die – S.O.D. (1985)

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Cause for Alarm – Agnostic Front (1986)

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The Age of Quarrel – Cro-Mags (1986)

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Crossover – D.R.I (1987)

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Join the Army – Suicidal Tendencies (1987)

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Immaculate Deception – Ludichrist (1987)

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Can’t You Take a Joke? – Mucky Pup (1987)

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You Got It – Gang Green (1987)

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The Joke’s On You – Excel (1989)

St. Patrick's Day: The Pogues e outros hinos da bebedeira

Nesta quinta, dia 17, será comemorado em todo o mundo o Dia de São Patrício, padroeiro da Irlanda. Internacionalmente, a data ficou conhecida por seu nome em inglês -St. Patrick's Day- e é uma ótima justificativa para beber até cair em nome do santo.

Poucas bandas combinam melhor com a tal comemoração que o Pogues, grupo que carrega em suas veias sangue verde. O conjunto surgiu das cinzas do Pogue Mahone -gaélico para a expressão "kiss my ass"- e liderado por um punk criado na Irlanda, radicado em Londres e ex-vocalista dos Nipple Erectors.

Autodestrutivo e um autêntico poeta das ruas, Shane MacGowan é hoje um fantasmagórico sobrevivente da heroína, do tabaco e dos excessos etílicos. O fato de estar vivo em 2016 é como imaginar Jim Morrison mendigando atualmente nas esquinas de Paris. Ou Sid Vicious ainda hoje a se drogar numa espelunca qualquer de Nova York. MacGowan é homem de outro tempo.

Líder torto do Pogues, MacGowan notabilizou-se como uma espécie de não-cantor. Por trás do folk irlandês de alma punk, o vocalista de sorriso podre entregava letras sobre a saga migratória de seu povo ("Thousands Are Sailing"), a vida de irlandeses marginais em Londres ("Boys From County Hell") ou em completo vazio existencial ("The Auld Triangle").

A poesia de MacGowan e a música do Pogues, executada com instrumentos de rock e também aqueles tradicionais do folk irlandês -violinos, apito, bandolim, banjo e acordeão- conquistou a atenção de dois admiradores famosos e que terminaram produzindo discos do grupo: Elvis Costello e Joe Strummer. O ex-líder do Clash, inclusive, participou de vários shows do Pogues, até mesmo no Dia de São Patrício, e integrou a banda por um curto período, quando MacGowan encontrava-se num estado físico mais deplorável que o normal.

                                                           https://lordsofthedrinks.files.wordpress.com/2012/12/shanemacgowan.jpg?w=652

A discografia do grupo vale ouro, mas, para começar, uma boa dica é "If I Should Fall From Grace with God", de 1988. Essa obra-prima produzida por Steve Lillywhite (Rolling Stones, U2, The Smiths) traz uma coleção de pérolas. Desde a faixa título, um 'blend' magnífico de folk com levada punk, passando pela clássica balada "Lullaby of London", a dilacerante "Thousands Are Sailing" e chegando a temas festeiros como "Turkish Song of the Damned", "Fiesta" e "Sit Down by the Fire".

O destaque do disco, no entanto, fica com "Fairytale in New York", escrita por MacGowan em parceira com Jem Finer, e lançada originalmente como single. A canção descreve os sonhos despedaçados de um junkie irlandês na noite de Natal de Nova York e apresenta um belíssimo dueto de MacGowan com a cantora folk Kirsty MacColl. "Fairytale in New York" é tida como a mais linda canção de Natal já escrita. Arrebatou um disco de platina na Inglaterra e tornou-se parte integrante da cultura popular.

A vida de MacGowan é o espelho de sua poesia marginal. No documentário "If I Should Fall From Grace: The Shane MacGowan Story", de 2001, o cantor é mostrado em variados estados de embriaguez, sempre com um cigarro entre os dedos encardidos de nicotina e destilando causos com um sotaque impenetrável. É triste e inesquecível a passagem sobre a prisão de Shane motivada pela denúncia de sua amiga Sinéad O'Connor - sim, aquela mesma do hit "Nothing Compares 2U".

Um 'pint' de cerveja irlandesa é a companhia perfeita para degustar a obra do Pogues. Sua música tem o poder de levantar qualquer festa, mas também um contraponto sombrio e melancólico, indicado para quem prefere terminar a noite curtindo uma fossa no canto escuro do balcão. 


CLÁSSICOS DA BEBEDEIRA

~ 5 temas do cancioneiro irlandês para ver duendes ~

  • "Beer Beer Beer" (THE CLANCY BROTHERS)
    Homenagem a Charlie Mopps, o homem que 'inventou' a cerveja e nos fez escapar de passar a vida tomando chá. De acordo com a letra, o homem foi tão feliz em sua criação que só pode ter sido rei ou sultão.

  •  "Whiskey in the Jar" (THIN LIZZY)
    Há inúmeras versões dessa canção folclórica, mas nenhuma comparável à que catapultou o Thin Lizzy ao sucesso, ainda no início de carreira, com o incrível trio formado por Phil Lynott, Eric Bell e Brian Downey.

  • "The Wild Rover" (THE DUBLINERS)
    O mais famoso de todos os temas de bebedeira tem registros que datam do século XVI. Narra a história de um andarilho a quem é negado o direito de pagar fiado numa taberna - até que mostra o ouro trazido de suas viagens. Essa gravação dos Dubliners é minha favorita.

  •  "Drunken Sailer" (IRISH ROVERS)
    Ahoy! O que pode ser mais legal que uma canção de embriaguez protagonizada por marinheiros? Provavelmente, nada.

  • "All for Me Grog" (THE CLANCY BROTHERS & TOMMY MAKEM)
    Um dos meus temas prediletos do folclore irlandês. O sujeito que gasta tudo em tabaco, whisky e pagando bebidas para as moças. Termina vendendo o par de botinas e outras peças de roupa para continuar bebendo.

O disco maldito do Bad Religion

O Bad Religion já esteve inúmeras vezes no Brasil e vê-los ao vivo não é exatamente uma novidade. Ainda assim, quem se aventurar no Lollapalooza, neste sábado, pode acabar testemunhando um pedacinho da história. E tudo porque o grupo pode incluir em seu repertório uma canção chamada "Billy Gnosis".

A execução dessa música ao vivo, como ademais qualquer material originário do álbum "Into the Unknown", de 1983, é desejo antigo e utópico de muitos fãs.

Concebido por Greg Graffin (voz) e Brett Gurewitz (guitarra), "Into the Unknown" desagradou de cara Jay Bentley e Pete Finestone, baixista e baterista da banda. Ambos abandonaram o barco antes mesmo de se iniciarem as gravações e foram substituídos por Paul Dedona e Davy Goldman.

Boa parte das 10 mil cópias existentes do disco acabaram devolvidas pelas lojas e terminaram estocadas num armazém. Com o tempo, os LPs foram sumindo do estoque até evaporarem de vez. E o álbum tornou-se uma autêntica relíquia.

"Into the Unknown" é um caso peculiar de disco que já nasceu maldito. Gurewitz recorda que a banda foi a San Francisco lançar o álbum no lendário Mabuhay Gardens, e deparou-se com uma plateia de 12 gatos pingados. Isso mesmo: DOZE. Rapidamente perceberam que o público havia recusado a nova proposta musical do grupo e que o repertório do disco deveria ser enterrado na história.



Dois anos mais tarde, e já sem Brett Gurewitz, internado numa clínica de desintoxicação, o Bad Religion, com o ex-Circle Jerks Greg Hetson no time, lançou um EP para sepultar de vez as lembranças do disco fracassado. Trocaram o desconhecido, para onde tinham se aventurado em "Into the Unknown", pelo conhecido hardcore/punk de 1980. E batizaram o EP comicamente de "Back to the Known" ("De volta ao conhecido").

Até 2010, o Bad Religion manteve-se em silêncio sobre esse capítulo singular de sua biografia.

No restante da década de 80, tornaram-se bastiões do punk americano. Com o fim de Minor Threat e Misfits em 1983, e de Dead Kennedys e Black Flag em 86, coube ao Bad Religion manter a chama do hardcore acesa. O grupo ganhou muitos adeptos nos EUA e na Europa, e seu álbum "Suffer", lançado em 1988, obteve o status imediato de clássico.

Alguns anos depois, na esteira do grunge e da febre alternativa, assinaram com a 'major' Atlantic Records e experimentaram o sucesso no mainstream do rock. "Recipe for Hate", de 1992, gerou os hits radiofônicos "American Jesus" e "Struck a Nerve", e "Stranger Than Fiction", lançado em 94, ganhou disco de ouro na América com 500 mil cópias vendidas.

A febre baixou e o Bad Religion retornou naturalmente para a Epitaph Records, selo fundado por Brett Gurewitz e que o fez milionário com o sucesso colossal do Offspring. E então, em 2010, através de um box-set especial com 15 LPs lançado pela própria Epitaph, o obscuro e esquecido "Into the Unknown" ganhou nova luz.

Fãs de diferentes gerações puderam, enfim, descobrir o que há no álbum que quase arruinou a carreira do Bad Religion, que fez Jay Bentley afastar-se provisoriamente do grupo e implodiu a turnê de divulgação por completo desinteresse do público.

A grande história por trás de "Into the Unknown" é que Graffin e Gurewitz, de um jeito torto, fizeram a coisa mais punk que era possível fazer em 1983: tocar rock progressivo! Após a fama imediata conquistada com o álbum de estreia, "How the Hell Could be Any Worse?", o Bad Religion chutou o balde e gravou um disco repleto de sintetizadores e com a faixa mais longa de toda sua carreira - "Time and Disregard", com sete minutos de duração. Ninguém entendeu bulhufas. E quem entendeu não gostou.

"Into the Unknown", analisado em retrospecto, é um álbum bastante curioso. O Bad Religion não tinha cacife e nem dinheiro para gravar rock progressivo. Sua abordagem exótica e ingênua resultou numa mistura estranha de prog, punk e hard rock americano do fim dos 70's. E o disco está longe de ser ruim. Mesmo com a produção inadequada e com arranjos nada convencionais, ainda soa como Bad Religion e oferece uma audição alternativa para o hardcore melódico que o grupo ajudou a criar.

Desde o relançamento do LP como parte do box-set -em CD, permanece inédito-, a banda resolveu resgatar para os palcos aquela que é a melhor canção de "Into the Unknown". Há registros ao vivo de "Billy Gnosis" tão recentes quanto junho de 2015.  E a música é executada com elegância e sem sombra de constrangimento. Até mesmo o site oficial do grupo presta agora certo respeito ao disco: "Através do tempo, o mundo terminou por alcançá-lo e 'Into the Unknown' tornou-se um item muito procurado por colecionadores. E merecidamente, pois se você deixar de lado sua parcialidade de cabelos punk espetados, descobrirá um álbum verdadeiramente fascinante".

Quem sabe o público brasileiro terá um gostinho de "Into the Unknown" na arena do Lollapalooza?

Daqui a pouco saberemos.


Ainda inédito em CD e no Spotify, "Into the Unknown" pode ser ouvido na íntegra, e em toda sua glória proggy-punk, no Youtube

Top 10 - Discos de bandas e artistas femininas




Hoje é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Para comemorar a data, Caixa Preta lista 10 discos imperdíveis gravados por artistas e bandas (majoritariamente) femininas.

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THE RUNAWAYS - "The Runaways" (1976)
Idealizado pelo compositor e agitador cultural Kim Fowley, as Runaways foram o primeiro grupo de rock formado apenas por mulheres a atingir o sucesso. Ainda adolescentes, Cherie Currie, Joan Jett, Lita Ford e Sandy West gravaram um emblemático álbum de estreia. Repleto de canções festeiras e provocadoras, o disco é um amálgama de hard rock e glam, perfeito para animar qualquer noite de sábado. "Cherry Bomb", a faixa que abre o álbum, tornou-se a canção mais conhecida das Runaways, e o cover de "Rock & Roll", de Lou Reed, é daqueles que devem ter feito ferver as noitadas na Sunset Strip, em Los Angeles.

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GIRLSCHOOL - "Hit and Run" (1980)
Quarteto inglês de heavy metal que ficou conhecido por seu pioneirismo em um gênero até então iminentemente masculino. A banda foi apadrinhada por Lemmy Kilmister e tem uma sonoridade que remete ao próprio Motörhead. Em "Hit and Run", álbum clássico do Girlschool, há riffs de guitarra à la "Fast" Eddie Clark e uma levada de bateria que lembra bastante o estilo do saudoso Phil "Animal" Taylor. O disco tem grandes canções, como "The Hunter" e a faixa título, além de um inesperado cover de "Tush", do ZZ Top.



ALANIS MORISSETTE - "Jagged Litlle Pill" (1995)
Podem me xingar, podem me crucificar, mas todo mundo tem direito a um 'guilty pleasure'. "Jagged Little Pill", de Alanis Morissette, dispensa apresentações. É um pequeno dicionário pop adolescente, com letras confessionais e uma cantora no auge da forma. Tem hits crocantes como "Ironic", "You Oughta Know", "Head Over Feet" e "You Learn", e participações de Flea (Red Hot Chili Peppers) e Dave Navarro (RCHP e Jane's Addiction). Vendeu 33 milhões de cópias e fez a cabeça de 9 em cada 10 garotas em meados dos anos 90. Alanis, infelizmente, nunca mais repetiu a proeza e a música pop ficou condenada a cantoras bem menos talentosas desde então.


BJÖRK - "Post" (1995)
Compositora, atriz, multi-instrumentista e uma das maiores e mais singulares cantoras da música pop. A islandesa Björk começou cedo, como artista mirim. Mais tarde, de 1986 a 1992, integrou a banda new wave The Sugarcubes, dos hits "Deus" e "Regina", com a qual gravaria três álbuns. Sua carreira solo virou do avesso as convenções do pop, com arranjos complexos e inusitados, orquestrações e 'electronica'. O álbum "Post", de 1995, é uma obra-prima que traz faixas incríveis como "Army of Me", "Possibly Maybe", "Hyperballad" e aquela que talvez seja uma das canções mais lindas já escritas: "Isobel", com arranjos do brasileiro Eumir Deodato.



HOLE - "Celebrity Skin" (1998)
O Hole não era uma banda 100% feminina, já que um de seus fundadores é o guitarrista Eric Erlandson. Mas a figura central do grupo, cantora e guitarrista, é mesmo Courtney Love. Além dela, o Hole teve ainda, em sua fase mais popular, a baixista canadense Melissa Auf Der Maur e a baterista Patty Schemel. "Celebrity Skin" não é o disco mais adorado entre os fãs da banda -esse posto fica com "Live Through This"-, mas funciona como uma usina de hits. Courtney está em sua melhor forma como vocalista, a produção é impecável e há canções soberbas, do quilate de "Malibu", "Awful" e a faixa título, que é um rockaço.



LE TIGRE - "Le Tigre" (1999)
Se você não esteve em uma pista de dança nos anos 90 ao som de "Deceptacon", então não viveu aquela década. O disco de estreia do Le Tigre, banda liderada pela ativista Kathleen Hanna, ex-Bikini Kill, produziu a música certa na hora certa. Mistura dançante de pós-punk com electro, o Le Tigre ainda despejou sobre a audiência letras ácidas e feministas, homenageando ícones como Yoko Ono e Sleater-Kinney, e colocando na mira figuras masculinas como o ator e cineasta John Cassavetes. Além de "Deceptacon", o disco ainda trouxe outro pequeno hit com "Hot Topic". O Le Tigre gravou outros dois discos, em 2001 e 2004, antes de encerrar as atividades.



PJ HARVEY - "Stories from the City, Stories from Sea" (2000)
A inglesa Polly Jean Harvey tem uma discografia bastante peculiar. Para cada disco torto e experimental que lança, compensa no seguinte com uma fornada de canções mais acessíveis. Seu álbum de 2000 pertence à segunda categoria e respira Nova York. "Stories from the City, Stories from Sea" tem algumas pedradas, como "Big Exit" e "This is Love", e outros momentos de suntuosa melancolia. O disco vendeu 1 milhão de cópias ao redor do mundo e PJ defendeu parte desse repertório ao vivo em São Paulo, no ano de 2004, num show arrebatador.



BRATMOBILE - "Girls Get Busy" (2002)
Fundado pelas universitárias feministas Allison Wolfe e Molly Neuman, editoras do fanzine "Girl Germs", o Bratmobile é mais uma banda oriunda da prolífica cena musical de Olympia, no estado norteamericano de Washington. O grupo, completo por Erin Smith, fez parte da primeira geração de riot grrrls e lançou três álbuns. "Girls Get Busy", último deles, editado em 2002 pela Lookout Records, tem adição de teclados e canções que alternam fúria e melodia. "Shop for America" é a grande faixa do Bratmobile e remete a Fugazi e ao pós-hardcore da década de 90.


THE DONNAS - "Gold Medal" (2004)
Banda californiana -foto na abertura do post- que começou como uma espécie de Ramones de saias, apresentando um punk bubble gum adolescente e mal tocado. Evoluíram muito rapidamente. A partir do terceiro disco, "Turn 21", já tinham encontrado sua personalidade e melhorado demais como instrumentistas. O álbum "Gold Medal" é talvez o mais pop do grupo - e num sentido nada pejorativo. A qualidade da produção impressiona e a safra de canções é de primeiríssima, oferecendo flertes com country e rock clássico. Impecável.


ANNA CALVI - "Anna Calvi" (2011)
Inglesa, filha de pai italiano, Anna Calvi assinou um dos melhores álbuns de 2011. Sua estreia em disco assombra pelo vozeirão e seu estilo como guitarrista, que herda algo de Link Wray e dos temas 'vibratto surf' do maestro Ennio Morricone. Suas composições são deliciosamente misteriosas e remetem a filmes imaginários - seja de western ou de surrealismos à David Lynch. "Suzanne and I", "The Devil" e "Blackout" são algumas das pérolas desse disco cool e fantasmagórico.

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BÔNUS: +10 discos de bandas femininas de garage, punk, pós-punk e indie rock.
  • Shonen Knife - "712" (1991)
  • L7 - "Bricks Are Heavy" (1992)
  • Lunachicks - "Binge and Purge" (1992)
  • Babes in Toyland - "Nemesisters" (1995)
  • 7 Year Bitch - "Gato Negro" (1996)
  • Tribe 8 - "Role Models for Amerika" (1998)
  • Sleater-Kinney - "The Hot Rock" (2000)
  • The Detroit Cobras - "Baby" (2004)
  • Sahara Hotnights - "Sparks" (2009)
  • Savages - "The Answer" (2015)

O velho novo Anthrax em For All Kings

Saiu há poucos dias o novo disco do Anthrax, "For All Kings". É o segundo esse ano de bandas pertencentes ao Big Four, congregação que autocelebra os quatro maiores nomes do thrash metal. O outro lançamento foi "Dystopia", do Megadeth, que marcou a estreia do guitarrista brasileiro Kiko Loureiro. Em 2015, o Slayer, mais um integrante do tal quarteto, já havia lançado "Repentless".

É interessante ver que o thrash metal resistiu ao tempo e que seus principais arquitetos ainda estão em atividade. O Exodus, que não é um dos Big Four, mas certamente um dos artífices do estilo, também soltou um disco de inéditas em 2015, "Blood In Blood Out".

Ouvindo todos esses álbuns recentes, fica clara a intenção dos veteranos em manter a música feita hoje ainda conectada aos fundamentos clássicos do gênero. Não existe um Ramones do thrash metal, que escreve sempre a mesma música e lança os mesmos e ótimos discos, mas estabelecer laços com o passado parece uma preocupação.

O novo trabalho do Anthrax comprova também a constante depuração técnica e o esmero com execução e registro em estúdio. E tudo porque o público de thrash metal pode ser bem nerd e exigente, em algum aspecto lembrando os fãs de rock progressivo. Esmiuçam discos e fichas técnicas, comparam os desempenhos de guitarristas e bateristas com o que fizeram no passado e não deixam escapar qualquer detalhe. Só baixam a guarda quando o aspecto nostálgico entra em cena.


Quem comprou "For All Kings" -que saiu no Brasil em edição limitada e numerada, com CD extra trazendo quatro faixas ao vivo e o EP de covers "Anthems"- conhece o Anthrax do avesso. Não é banda para neófitos. E esse segundo álbum desde o retorno de Joey Belladonna, cantor de quatro discos clássicos do grupo entre 1985 e 1990, mostra uma banda que há muito ficou adulta. Idos são os tempos em que usavam bermudas floridas e faziam galhofas como lançar um debochado EP de hip hop - por ironia, o item mais vendido de sua discografia.

O Anthrax ficou sério ainda na virada dos anos 90, e mais claramente quando arregimentaram o vocalista John Bush. Com ele a bordo, sobreviveram ao declínio do thrash metal e flertaram com o pop e o grunge à la Alice in Chains. São dessa fase dois de seus maiores hits: "Only", muito executada nas rádios rock de São Paulo- e "Safe Home", com direito a vídeo-clipe estrelado por Keanu Reeves.

A revalorização do thrash metal, percebida nos primeiros anos do milênio e que arrebatou novos e jovens fãs, todos dedicados a escavar antigas novidades oitentistas, levou o grupo a encerrar a era Bush -sem trocadilhos-, que já durava 13 anos. Até o Metallica, que em algum momento tornou-se gigantesco e comercial demais para o gueto do thrash, tentou bandear de volta para onde tudo começou.

Com as voltas de Belladonna e do guitarrista Dan Spitz em 2005, o Anthrax atendeu às demandas saudosistas e excursionou tocando na íntegra sua obra-prima "Among the Living", de 1987. Foi a centelha para que o grupo mergulhasse de volta no metal clássico e apagasse da memória a interessante produção com John Bush - seus discos sequer constam do catálogo da banda no Spotify.

Spitz, aposentado, caiu fora após a turnê de reunião, e o grupo, entre idas e vindas chatas demais para explicar aqui, lançou, em 2011, com Joey Belladonna, o disco "Worship Music". Se você conhece o álbum, sabe mais ou menos o que esperar de "For All Kings". Não é mais o Anthrax rápido, com backing vocals punks e a ironia corrosiva dos anos 80. Há lampejos disso, claro, como na boa "Evil Twin" e na ótima "Zero Tolerance", que fecha o novo disco. Mas os novaiorquinos parecem agora mais comedidos e interessados em investir num tipo de heavy metal classudo, com muita melodia, e que combina com a voz de Belladonna feito feijão e arroz. O retorno às raízes thrash, alardeado de lá e de cá, ficou no meio do caminho.

Charlie Benante, dono da banda ao lado de Scott Ian, mostra-se ainda um senhor baterista. Talvez o melhor que o thrash metal produziu. Ou talvez tão bom quanto outro gigante, Dave Lombardo, ex-Slayer. Ian, por sua vez, é o judeu boa praça, fanático por KISS e classic rock americano, e um dos engenheiros que criou a palhetada de guitarra que é a própria epítome do thrash metal, mas que agora é usada pelo próprio com alguma parcimônia.

"For All Kings" tem tudo no lugar e soa como o esforço de uma banda séria e coesa, comprometida com sua imagem e os 35 anos de carreira. Ao mesmo tempo, parece um disco pensado e estudado demais, e que nunca chega a decolar.

O CD bônus da edição especial, que mostra o Anthrax interpretando à perfeição canções de Rush, Journey e Cheap Trick, é simbólico. Talvez tenham se tornado clássicos demais e perigosos de menos.



"Breathing Lightning", candidata a hit, é um dos destaques de "For All Kings"