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Adeus ao capitão

Volta e meia eu me lembrava de Captain Beefheart. Eu o imaginava em seu trailer, no alto do deserto do Mojave, vivendo uma realidade paralela com suas pinturas e a companhia de Jan - mulher com quem era casado há 40 anos.

Até alguns anos atrás, eu nutria o mesmo tipo de sentimento por outro gênio louco dos 60's. Visualizava Syd Barrett em Cambridge, lidando com seus demônios particulares e se entretendo com o jardim.

Os dois se foram, natural que sejam assim, mas deixaram a sensação de que, pouco a pouco, não restará qualquer revolucionário da música dividindo conosco esse planeta.

O inventor da psicodelia floydiana morreu em 2006. Don Van Vliet, o Captain Beefheart, morreu na última sexta-feira, dia 17.

Fruto dos anos 60, Don deixou um legado que influenciou esteticamente new wave, punk, blues e congêneres.

Difícil acreditar que Beefheart e Frank Zappa, protagonistas da vanguarda criativa dos anos 60 e 70, se conheceram na adolescência. Tocaram juntos, pintaram, bordaram, se desentenderam e entraram para a história.

O álbum mais emblemático de Captain Beefheart, o duplo "Trout Mask Replica", de 1969, foi produzido e lançado por Zappa. Os dois tocariam juntos ainda no lendário "Bongo Fury", de Zappa.

Mas apesar da proximidade com o gênio, Van Vliet tinha seu próprio universo musical. Uma mistura torta e improvável de blues, 60's rock, avant-garde, psicodelia e até certa dose da sujeira e distorção executadas por contemporâneos como os Stooges. Tudo sob uma voz pigarrenta que muitos comparavam a Howlin Wolf.



O disco de estreia de Beefheart, "Safe as Milk", de 1967, é mais do que um impressionante cartão de visitas. Faixas como "Sure 'Nuff 'n Yes I Do" e "Electricity" são simplesmente obrigatórias a quem se dedica a estudar os anos 60.

Dono de uma carreira errática ao longo dos anos 70, em que brigou, se reconciliou e brigou de novo com Zappa, Beefheart gravou seus últimos discos na virada para a década de 80. "Doc at the Radar Station", seu penúltimo trabalho, é outra gema com nível de "discoteca básica".


Em 1982, Van Vliet, que nunca teve disposição para lidar com as coisas da indústria fonográfica, largou a música para se dedicar integralmente às artes plásticas - sua habilidade para as artes foi evidenciada aos 13 anos de idade quando recebeu convites para estudar na Europa. "Meus pais fugiram para o deserto para me afastar da arte", revelou em entrevista a Dave Letterman.

Desde então, Don vivia recluso em um trailer no deserto do Mojave numa espécie de idílio criativo. Cruzei parte daquela imensidão poeirenta em duas ocasiões e o lugar tem mesmo algo de místico. Natural que uma alma como a de Van Vliet tenha buscado refúgio naquele isolamento contemplativo.

Um dos únicos contatos de Beefheart com gente da música era a inglesa PJ Harvey.

Ela conta que em 2000, Don, provavelmente sob os efeitos da esclerose múltipla que veio a dominá-lo, não reconheceu sua voz ao telefone. Mesmo assim, encheu de elogios a demo do que viria a ser o disco "Stories from the City, Stories from the Sea".

A percepção de Don mantinha-se aguçada: o álbum é mesmo excelente.

Descanse em paz, capitão.

A influência de Lynott - 24 anos depois

Dezembro é um mês de trágicas mortes no mundo da música. De John Lennon e Dimebag Darrell -assassinados por fãs psicopatas- a Darby Crash, do Germs, que cumpriu um pacto suicida com a namorada.

Essa também foi a época em que Phil Lynott, líder do Thin Lizzy, deu seus últimos suspiros. O vocalista morreu logo após as festas de fim ano, mais precisamente em 4 de janeiro, em decorrência de anos de consumo enlouquecido de drogas. Seus órgãos simplesmente pararam de funcionar com a quantidade de veneno ingerida ao longo da vida. Um desfecho mais sombrio e doloroso que uma overdose.

Caixa Preta se antecipa às homenagens que certamente acontecerão daqui a um ano, quando se completará a data de 25 anos de sua morte, e relembra aqui mais um ano sem o pai do rock irlandês.


Imagine você o que deve ter sido crescer filho de mãe solteira e único negro da escola, do bairro e da cidade inteira na Irlanda dos anos 50?

Agora imagine que, contra todos os prognósticos, esse alvo perfeito de bullying veio a se tornar o mais adorado rock star do país, dono de uma estátua no centro de Dublin e com sua efígie estampada em selos comemorativos dos correios.

E Lynott percorreu uma trajetória igualmente improvável na música. A versão do Thin Lizzy para a cantiga popular "Whiskey in the Jar" fez mais pela auto-estima do povo irlandês, então vivendo numa pindaíba, do que todo o progresso socio-econômico das décadas seguintes.

Um negro irlandês transformar folk em rock no ano de 1973 e ainda emplacar o Top 10 parece obra de ficção.

O documentário "Out of Ireland", exibido há alguns anos no Eurochannel e inédito em DVD, remonta a árvore genealógica do rock'n'roll na Irlanda e dedica ao Thin Lizzy e, mais especialmente a Phil Lynott, um capítulo generoso.

No filme, Bono Vox rasga elogios ao baixista/vocalista e Bob Geldof revela que Lynott vivia o personagem "astro do rock" em tempo integral. "Ia de óculos escuros e jaqueta de couro ao supermercado ao meio-dia".

Filho de um suposto e desconhecido marinheiro brasileiro, Phil é cultuado pela belíssima voz, o carisma, a inteligência e a presença de espírito de um autêntico rock star.

A carreira de Lynott com o Thin Lizzy é irremediavelmente ligada ao hard rock e heavy metal, embora interpretassem esses gêneros de maneira singular e, em seu DNA, fossem pura e simplesmente uma banda de rock'n'roll. E, vez ou outra, com o vocalista justificando sua pele e enveredando pela soul music em temas magníficos.

Difícil classificar o Lizzy, mas sua influência. essa sim, parece não ter fim. De Henry Rollins, que no livro "Get in the Van" declara-se um fã, ao suecos do Cardigans - autores de uma versão açucarada de "The Boys are Back in Town".

Em 2007, o Motörhead incluiu um cover de "Rosalie" em seu show em São Paulo. Na ocasião, Lemmy perguntou se havia fãs do Thin Lizzy na casa. Uns poucos se manifestaram. Decepcionado, disse: "Vamos lá, o cara era brasileiro".

Em 2010, o Supersuckers supreendeu ao abrir seu show em Sampa com um cover de "Are you Ready" - pedrada de um B-side do Thin Lizzy.

Mais de duas décadas de sua morte e a lenda de Phil Lynott sobrevive.



John Lydon: a entrevista

Impossível contar a história do rock sem citar John Lydon. O eterno líder do Sex Pistols é amado, odiado, imitado, criticado e reverenciado. Tudo ao mesmo tempo e com o mesmo fervor.

Aos 54 anos, Lydon resolveu reformar o magnífico PiL. Como parte do processo de botar a banda mais uma vez na estrada, o vocalista tem concedido as habituais entrevistas promocionais. Uma delas, de março deste ano, me pegou de surpresa.

Mais de uma vez li relatos que descrevem John Lydon como um sujeito arrogante e megalomaníaco. De outras fontes, ouvi que o cantor é alguém que vive em outro planeta.

O jornalista André Barcinski, por exemplo, conta que desistiu de entrevistar Lydon para seu livro "Barulho" após este ter exigido uma limousine para ir buscá-lo num hotel.

Pois bem, ao menos para este escriba a fama acaba de ser implodida.

O responsável pela façanha é o canadense Nardwuar, um impagável entrevistador sobre o qual escrevi um texto que já se evaporou da Caixa Preta. Nard conversou com Lydon por nada menos que 45 minutos. O resultado é diversão pura.

O gancho para a entrevista foi, claro, a reunião do bacanérrimo PiL - banda que não se apresentava ao vivo há 17 anos e que em 2010 foi headliner do badalado festival Coachella, entre outros.

E se apenas a notícia da volta do PiL já seria suficiente para animar qualquer ouvinte, a conversa -que você pode ouvir nos podcasts do iTunes- tem um aura de camaradagem que eu há muito não via.

Lydon, ao contrário da (má) fama, revela-se um daqueles ingleses fanfarrões e boa praça: não economiza nas gargalhadas e responde sobre tudo com supreendente simplicidade.


Pra começar, essa figura "icônica" do rock'n'roll mostra que não se fechou numa bolha e acompanhou muito do que se fez na música desde a revolução de costumes que ajudou a criar. Só pra citar um exemplo, John Lydon é fã do Exploited. Eu não imaginaria.

Como bom inglês, fala com gosto de seu time de futebol favorito, o londrino Arsenal, de quem cita vários jogadores da velha guarda. Mas também discorre sobre atividades prosaicas, como preferir DVDs ao cinema - local onde é tremendamente assediado.

Lydon se diz fã das bandas alemãs Magma e Can, gosta do Free, diz que o Clash não sabia tocar reggae direito e reclama que a herança do punk é lamentável: de um lado bandas obtusas e radicais, de outro o Green Day com cabelos espetados e jaquetas de couro.

Nardwuar é o melhor entrevistador que conheço. Mistura cara-de-pau com conhecimento enciclopédico de rock. Em uma de suas considerações, pergunta se Lydon conheceu "heróis do punk americano" - gente como, por exemplo, Jello Biafra.

A resposta é um contraponto curioso ao que eu mesmo havia perguntado a Jello há menos de um mês: "Ele fala demais e não tem humor. Tenta parecer intelectualizado e provar seu ponto de vista sobre as coisas. Parece que está sempre tentando vender essa imagem. Acho que às vezes temos que saber socializar e apenas bater um bom papo".

E isso Lydon provou que sabe fazer.



No vídeo acima, o PiL no auge da forma. Quem se aventura a trazer Lydon e banda para o Brasil?