Pense em dois caras imortais, daquele tipo raro que ganha o status de lenda ainda em vida. Artistas que romperam barreiras e amealharam fãs das mais diversas origens e gerações. Rebeldes, ousados, transgressores. Frutos de um mundo que não existe mais.
Lemmy Kilmister e David Bowie morreram. E como será o mundo sem eles?
Ian Fraser e David Jones nasceram na mesma Inglaterra do pós-guerra. O primeiro, criado pela mãe e a avó. O segundo, filho de uma família em que abundavam casos de doenças psiquiátricas. Ambos apaixonados pelo rock'n'roll americano e que terminaram salvos, e por extensão também nos salvaram, graças à música.
Lemmy teve um discreto sucesso local com o Rockin' Vickers na década de 1960 e até tocou guitarra em um disco de Sam Gopal, veículo para o músico da Malásia tocar sua tabla em canções viajandonas. Bowie, por sua vez, foi saxofonista em bandas largamente ignoradas e queimou um cartucho atrás do outro até terminar empregado em uma agência de publicidade. Os dois ralaram até conquistar o sucesso, que veio primeiro para David Bowie, com "Space Oddity", provando que o jovem artista já era, naquela altura, uma antena de sua época. Lemmy ainda passaria pelo lendário grupo de space rock Hawkwind, onde contribuiria com seu único e pequeno sucesso comercial, "Silver Machine", até fundar o bem-sucedido Motörhead.
A fama de Bowie é incomparavelmente maior, assim como seu impacto na cultura popular. Viveu duzentas vidas numa só e estendeu sua influência para a moda, os costumes e as artes visuais. É um farol de nosso tempo. Reinou no glam rock, criou Ziggy Stardust e enlouqueceu uma geração. Depois se reinventou tantas outras vezes, passeando pelo funk, soul, new wave e a eletrônica. Imprimiu sua marca em todos os produtos da cultura pop.
Lemmy contentou-se com um feito mais modesto: estabelecer o arquétipo definitivo do que deve ser um rock star. Íntegro, carismático, verdadeiro. Viveu a vida que pregou até seus últimos dias. Como seu finado amigo Phil Lynnot, do Thin Lizzy, Lemmy era do tipo que saía para as compras de jaqueta de couro, óculos escuros e botinas. Era um rockeiro em tempo integral. Não importava se estivesse em cima do palco, diante de milhares de fãs, ou numa espelunca qualquer, apostando numa máquina de caça-níqueis.
A morte de Lemmy Kilmister me atingiu como uma bomba. O mundo todo na frequência das festas de fim de ano e vem a notícia de que aquele cara que julgávamos à prova de tudo tinha sucumbido a um câncer agressivo, descoberto apenas dois dias antes. O inglês de Stoke-O-Trent, mas que morava em Los Angeles, morreu de pé. Quinze dias antes ainda estava excursionando pelo mundo, como fizera durante os 40 anos anteriores. O baixista do Alice in Chains, Mike Inez, previra no documentário "Lemmy: 51% Motherfucker, 49% Son of a Bitch" que o líder do Motörhead teria um funeral de chefe de estado. E a comoção internacional teve quase essa proporção.
A morte de David Bowie, ao contrário, me deixou inicialmente desorientado. Um tipo estranho de dèja-vu. Porque o inglês de Londres, mas que morava em Nova York, também acabara de completar seu aniversário. As coincidências com a morte de seu compatriota não faziam sentido. E ainda, no caso de Bowie, com o choque amplificado pelo lançamento do ótimo álbum "Blackstar" e o atordoante vídeo de "Lazarus", que transformou sua morte numa expressão de grande arte. De Paul McCartney a Madonna, de Mike Ness a Vernon Reid, o mundo se curvou à sua grandiosidade.
E é apenas o começo do fim. Somos a geração que terá o carma de enterrar seus últimos heróis.
O coup de grace de Bowie: transformar a proximidade do fim no último capítulo de sua obra
Lemmy Kilmister caiu atirando. Um derradeiro álbum em 2015 e shows até seus últimos dias
PS: Alguns leitores contactaram o blog para avisar que a foto que ilustra essa coluna é uma montagem de Internet. Fica então o registro. Mas vamos mantê-la publicada, pois é tão boa que deveria ter existido. ;)
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5 comentários:
Muito bonito, mas a foto é falsa. É uma montagem da Internet. Lemmy nunca foi com os cornos do Bowie...
Sim, fiquei sabendo há pouco. Obrigado pelo toque. Mas a foto é tão boa que deveria ter existido. Vamos mantê-la então como licença da realidade.
Porra, não sabia que vc tinha voltado a postar no blog. Decobri por acaso, pesquisando no google sobre a biografia de Bowie escrita por Marc Spitz. Já tá salvo aqui, para que eu, aos poucos, vá lendo as postagens que perdi ...
Legal, Adelvan! Sua audiência é sempre muito apreciada. Vamos ver se consigo deixar o Caixa Preta mais ativo em 2016.
Entenderei perfeitamente se não conseguir - anda bem desanimador pra quem gosta de escrever. A impressão que tenho é que ninguém lê mais nada que vá além dos tais fatídicos 180 caracteres ...
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