ÚLTIMAS COLUNAS
Leia, comente, compartilhe

Jeff Pezzati e Naked Raygun: heróis não morrem

Fiquei sabendo, tardiamente, que Jeff Pezzati, ícone da cena alternativa de Chicago, vem sofrendo há alguns anos do mal de parkinson.

À frente da The Bomb, banda que fundou em fins da década de 90, Pezzati tem a bravura de continuar gravando e, principalmente, se apresentando ao vivo.

Não fala sobre sua condição, mas é visível que, mais do que sua conhecida timidez, a performance comedida no palco é um jeito de controlar os sintomas da doença.

Jeff Pezzati passou por um divórcio que quase o levou à ruína financeira, descobriu o parkison, mas continuou de pé. É um sobrevivente.

No início dos anos 80, integrou -como baixista- uma das bandas americanas mais cultuadas do período: o trio de noise punk Big Black. Começava ali sua amizade com o guitarrista colombiano Santiago Durango, com quem tocaria mais tarde no Naked Raygun, e com o idiossincrático músico e produtor Steve Albini, que viria a produzir, uma década e meia depois, dois álbuns da The Bomb.

A importância do Naked Raygun para o rock underground de Chicago é difícil de ser medida. Mas a afirmação de um crítico do jornal Chicago Tribune dá a ideia: "É simplesmente a maior banda que Chicago já produziu".

E estamos falando da cidade que deu origem a grupos como Jesus Lizard, Ministry, Smashing Pumpkins, The Dwarves, Wilco, Tortoise, Trouble e muitos mais.

O Naked Raygun cantava sobre a vida dos jovens da classe operária. Seus integrantes se misturavam com o público e eram parte dele. Dirigiam a própria van nas turnês e circulavam pelos subúrbios com seus inseparáveis coturnos Doc Martens e os indefectíveis corte de cabelo escovinha. Eram uma espécie de Clash local, mas bebiam mesmo do songwriting do Buzzcocks.

Seu álbum de estreia, Throb Throb, de 1985, é uma gema do punk americano. Em impacto sônico, certamente está ao lado de discos como Wild in the Streets, do Circle Jerks, e Damaged, do Black Flag. Em qualidade de composição, está definitivamente acima.

Os primeiros 12 segundos do álbum, com o riff lancinante de "Rat Patrol", obra do talentoso John Haggerty, resultam no melhor início de um disco punk desde Nevermind the Bollocks.

E desta bolacha saíram outras preciosidades, como "Surf Combat", "Metastasis" -que conheci num passado longíquo através de uma coletânea da Flipside- e "Managua". Os riffs abrasivos e os famosos "hey-hey-hey" já estavam todos lá, incitando a tensão e a excitação de uma época.


Como uma nota curiosa, a capa de Throb Throb é assinada pelo importante quadrinista Mike Saenz, também natural de Chicago, e pioneiro absoluto na criação de gibis com arte gerada em computador ("Shatter", "Crash", etc).

O Naked Raygun gravaria uma seqüência de álbuns fundamentais na segunda metade dos 80's, como Jettison, All Rise e Understand?, até encerrar a carreira em 1991, pouco depois de lançar seu epitáfio: Raygun...Naked Raygun.

Desde 1999, quando gravou o belíssimo disco ao vivo Free Shit!, o Raygun faz apresentações bissextas para plateias ávidas em reviver momentos perdidos da juventude punk.

Jeff Pezzati está vivo.


Naked Raygun toca "Rat Patrol" ao vivo em 1988

Passado perdido - A experiência lúdica dos LPs

Passei as últimas horas ouvindo LPs. De Run-DMC a Trio Mocotó, passando por Black Sabbath, Meat Puppets e o chato de galochas Giorgio Moroder.

Eu não ouvia um LP há anos. E a razão para isso é banal: apreciar os velhos discos de vinil dá trabalho.

Quando o fonocaptador -popular agulha- do meu toca-discos foi para o espaço, encostei o aparelho e mantive meus ouvidos entretidos pelas centenas de CDs e os muitos gigabytes de MP3.

Você não compra uma agulha de vitrola na loja da esquina, afinal de contas.

Mas confesso que, de vez em quando, eu olhava para o toca-discos empoeirado -e não é modo de dizer- e sentia certa culpa. O aparelho é antigo, claro, mas supimpa: um Gradiente semiautomático S-126 com tração por correia (belt drive). Não é o supra-sumo das pick-ups, longe disso, mas também não faz feio.

Acontece que botar o bicho pra funcionar não era exatamente uma prioridade. Por isso, a nova agulha da LeSon chegou com apenas cinco anos de atraso.

Comprei a substituta na manhã deste sábado numa loja bacana da Santa Ifigênia (onde mais?) por 40 pratas. Nada barato, mas considerando que virou uma peça de reposição para o trabalho de DJs -e fetiche de saudosistas- o valor é compreensível.

Puxei um álbum aleatório para ressuscitar o toca-discos, que responde também para um receiver Gradiente S-126. Saiu da pilha Raising Hell, um clássico do rap old school que merece mesmo ser ouvido em vinil.

Coloquei a bolacha pra rodar e tive que suspender o braço da vitrola imediatamente. O disco estava sujo e o chiado parecia o de um gato afiando as unhas num quadro negro. Passei uma flanela e a qualidade do áudio mostrou-se relativamente boa, ainda mais para uma prensagem nacional.

Distraído em outras tarefas, tive que atravessar a casa minutos depois para virar o lado do disco e soprar uma bolinha de poeira da agulha.

Os LPs demandam atenção triplicada do ouvinte e não tenho dúvidas que foi justamente essa exigência que formou gerações de audiófilos. O vinil caiu porque o mundo mudou. Convenhamos, nada mais acrônico nos dias atuais do que pausar a vida multitarefa para se sentar e ouvir um disco.

Mas velhos hábitos escondem novas recompensas.

No fim do dia, tive a ideia de visitar meus pais e vasculhar os LPs da infância. Meu pai, por acaso, foi dono de um comércio vizinho à Rádio Record nos anos 70. Ganhou discos promocionais de montão. De singles de Dee Dee Jackson e do maestro Paul Mauriat, até trilhas orquestrais cubanas para ouvir em cruzeiros marítimos.

Achei intactos os compactos da clássica série "Disquinho"-relançada em CD pela Warner- e os sequestrei por tempo indeterminado. Curioso, apresentei o formato vinil para minha filha de três anos. Ela vibrou quando viu a capa da edição com a história da Branca de Neve.

Puxei a bolachinha da capa e perguntei se sabia o que era aquilo. "Um DVD?", perguntou ela. Achei sagaz a associação e expliquei que era quase isso, mas não tinha imagem. "E como faz?", indagou a pequena.

Levei-a para ver o toca-discos e mostrei o funcionamento da geringonça. Ela adorou ver o disquinho girando e, como qualquer criança normal, tentou pará-lo com o dedo. Mas quando ouviu a pomposa trilha incidental da Branca de Neve ecoando pela casa, pôs as mãos sobre a boca e arregalou os olhinhos.

Não piscou até a bolacha parar de girar.

  Parte 1 de 4 do documentário "John Peel's Record Box", sobre a monstruosa coleção do lendário radialista inglês. Os discos contam a nossa vida

"Pais e Punks": igual a tudo na vida

Na semana passada, o canal GNT exibiu "Pais e Punks", documentário que revela como alguns integrantes de bandas punk lidam com a paternidade e seus efeitos.

O tema é quente. Há alguns anos, a MaximumRockandRoll dedicou uma edição especial a respeito. A ideia era entender como um punk rocker pode se tornar um pai de família sem repetir os padrões impostos socialmente.

O documentário esbarra nessa abordagem, mas ao invés de veganos que alimentam a prole com dietas radicais ou punks ortodoxos que vivem numa bolha alheia ao mundo do consumo, a diretora Andrea Blaugrund Nevins entrevistou membros de bandas conhecidas e que vivem de música.

Nesse sentido, foi bastante acertada a escolha de Jim Lindberg, vocalista do Pennywise, como protagonista do filme. Pai de três filhas, Lindberg passa meses em turnê para sustentar a família e vive num eterno dilema para conciliar seus papeis.

O empresário da banda e o idealizador do festival itinerante Warped Tour não vêem conflito na situação. É tudo business. "Não vejo porque o Pennywise não possa estar aí daqui a 10 ou 20 anos. Se continuarem levando a carreira a sério, trabalhando duro e entretendo o público, vão durar muito tempo", diz Andy Somers, o agente.

Mas há dois temas espinhosos pelo caminho: manter relações familiares quando se passa cinco meses por ano longe de casa e preservar o espírito punk tocando toda noite por dinheiro.

Jim Lindberg não aguenta uma coisa nem outra. Confessa que trocaria a adulação e a vida na estrada por estar ao lado das filhas. E que pinta o cabelo e o cavanhaque pra que a molecada skatista não perceba que o vocalista do Pennywise é um coroa.

Vários outros entrevistados deixam as máscaras caírem. 

Casos de Tony Adolescent, que diz não ter mais vigor físico para aguentar o ritmo das apresentações do Adolescents. De Fat Mike, do NOFX, que revela encher a cara antes de subir no palco. E de Duane Peters, o porra-louca do US Bombs, que confessa sentir-se um palhaço de circo tocando a mesma música toda noite. Pesado.

Todos fazem isso para sustentar seus filhos, o que pode frustar a utopia punk de manter a música e a mensagem puras. Talvez seja apenas o tipo de entrevistado escolhido para o filme. Ou talvez seja apenas a realidade.

Mas é no segmento final de "The Other F Word" -o título original brinca com o "f" de "family" em lugar "fuck"- que o bicho pega no lado emocional.

Flea, o milionário baixista do Red Hot Chili Peppers e punk de ocasião, que num passado longíquo tocou no Fear, fala sério como poucas vezes. Enxuga as lágrimas relembrando sua família disfuncional e se comove ao afirmar que ter sido pai lhe deu uma segunda vida.

Tony Adolescent também remexe nas más experiências da infância e conta como jamais superou o trauma de ter perdido um filho às vésperas do nascimento. Até Duane Peters, radical skatista da primeira geração e um dos vocalistas mais alucinados do punk rock, chora de soluçar ao lembrar do filho morto num trágico acidente automobilístico.

É fácil ligar os pontos e entender porque vários desses músicos, filhos de pais alcoólatras e mães fanáticas por religião, encontraram no punk rock sua válvula de escape. E mais ainda: porque se tornaram pais amorosos e que não querem destruir a infância de suas crianças. 

Alguns se tornaram pais de família quase convencionais. Outros, como Lars Frederiksen, do Rancid, não são mais do que moleques crescidos. Poucos, como Ron Reyes, ex-Black Flag, largaram tudo para trás. Mas todos foram profundamente afetados por esse terremoto chamado paternidade.

Como reflete Jim Lindberg, após largar o Pennywise para assumir o papel integral de pai: talvez o jeito de mudar o mundo seja educando melhor as crianças.

Faz sentido.

MaximumRockandRoll - Os 30 anos da bíblia punk

A MaximumRockandRoll me foi apresentada por Fábio, vocalista da banda WCHC, numa madrugada qualquer dos anos 80. Enquanto fazia hora para entrar no Rainbow Bar, um pequeno clube underground no bairro do Jabaquara, folheava maravilhado o fanzine que, já naquela época, era tido e havido como "a" fonte de informações sobre a cena punk internacional.

Só fui botar as mãos em outra MRR em 1993, quando visitei uma lojinha punk de Milão chamada New Zabriskie Point. Comprei a edição do mês com o proprietário, Stiv Valli, ele próprio um importante fanzineiro italiano que foi matéria de capa da MaximumRockandRoll.

Quando voltei ao Brasil, resolvi imediatamente assinar a MRR. Ao longo dos anos, perdi a conta de quantas bandas conheci nas páginas do zine de San Francisco: Los Crudos, Man is the Bastard, New Bomb Turks, The Queers.

Mas o grande barato da Maximum nunca foi exatamente a crítica ou o jornalismo musical. A MRR, ao contrário do famoso e influente Flipside, seu equivalente de Los Angeles, sempre tratou o punk como uma subcultura com um código de ética rígido e sem concessões.

E a grande arena para o debate ideológico eram as páginas de colunistas. Por ali passaram escritores punk, donos de selos independentes, jornalistas, músicos e observadores do movimento. De Larry Livermore, da Lookout Records, a Ben Weasel, líder da popular banda Screeching Weasel. De Lefty Hooligan e seu pensamento leninista ao quase conservador Jeff Bale.


No centro de tudo estava o editor Tim Yohannan, uma das figuras mais complexas do punk americano. Mesmo com toda a influência conquistada pelo fanzine em décadas de atividade, Tim Yo jamais quis que a MRR deixasse de ser operada como um coletivo. Ele optou por manter um emprego no ambiente acadêmico e seu radicalismo levou à perda de conhecidos anunciantes, como a Alternative Tentacles, de Jello Biafra, que Tim alegava divulgar lançamentos de discos que não eram punks.

A personalidade difícil de Yohannan o fez colecionar muitos desafetos ao longo dos anos. Alguns "shitworkers" saíram para fundar seus próprios fanzines -como os influentes Punk Planet e HeartattaCk- e leitores famosos, como Billie Joe Armstrong, do Green Day, guardam rancor de décadas pelas críticas ácidas do patrono punk.

Entre 1999 e 2001, conheci dois famosos colunistas da MRR que passaram por São Paulo: o escritor Mykel Board e Dave Dictor, vocalista da lendária banda hardcore MDC. Board, que escreve para o fanzine desde o início dos 80's, afirma que Tim Yo era um dos únicos punks que jamais se venderiam. E as opiniões de Dictor reforçaram a reverência.

Por isso, quando Yohannan morreu de linfoma, em 1998, muito se especulou sobre o fim da MRR. Mas o fanzine permaneceu ativo graças ao esforço de uma nova geração de colaboradores e completa impressionantes 30 anos de atividade em 2012.

Fábio, do WCHC, morreu tragicamente em um atropelamento poucos anos depois de me apresentar a MRR. O Rainbow Bar não demorou muito para fechar as portas. Flipside, Punk Planet e HeartattaCk deixaram de ser publicadas. A New Zabriskie Point também não existe mais.

Mas a MaximumRockandRoll resiste ao tempo.

Rolling Stones: 50 anos em 5 regravações

Na semana em que completam 50 anos de carreira, daria para falar muito sobre os Rolling Stones. Inclusive, e principalmente, sobre o evento quase surreal que é manter uma banda de rock ativa por meio século.

Lembre-se: os Stones são contemporâneos dos Beatles e, seja como testemunhas ou como protagonistas, passaram por todas as metamorfoses musicais das últimas cinco décadas.

Poderia falar também sobre minhas lembranças de infância com os clipes de "Start Me Up" e "Emotional Rescue", da história bizarra de um amigo que salvou Mick Taylor de ser atropelado por um ônibus em São Paulo (sim, aconteceu!) ou defender a subestimada obra dos Stones nos anos 80. O assunto dá caldo.

Parece mais divertido, no entanto, medir a influência do songwriting de Jagger e Richards, os Glimmer Twins, na música pop. Se foram extremamente impactados pela música negra norteamericana, os ingleses devolveram a dose sendo regravados pelos principais baluartes da soul music - de Tina Turner a Marvin Gaye, de Otis Redding a Aretha Franklin.

Mas quanto mais estranhas e virulentas as regravações, melhor o resultado. Ao longo dos últimos 30 anos, o material dos Rolling Stones foi simplesmente virado do avesso.

Abaixo, uma pequena lista que resume 50 anos de carreira em 5 covers sensacionais:



Sympathy for the Devil

LAIBACH
(1990)
Dois anos antes de "coverizar" esse clássico dos Stones, a banda da antiga Iugoslávia -atual Slovenia- havia regravado integralmente o álbum "Let it Be", dos Beatles. O resultado aqui é tão incrível quanto: ritmos marciais sob uma ambientação de industrial music. O suíngue dos ingleses é transformado em gelo no Leste Europeu. De arrepiar.

Under My Thumb
MINISTRY
(2008)

O Social Distortion regravou "Under My Thumb" duas vezes em estúdio. A versão de 1996 é, provavelmente, a melhor gravação que existe dessa canção. Mas não a mais original. O velhaco Al Jourgensen misturou tecladinhos oitentistas com guitarras distorcidas e sua voz cavernosa para criar um hit que faria sucesso nas pistas de dança do inferno.


I'm Free

SOUP DRAGONS
(1990)
É a canção que fecha a versão inglesa do álbum "Out of Our Heads", de 1965. Na América, a faixa foi limada do LP, mas ganhou sobrevida em 1990, quando virou o hit solitário da banda britânica Soup Dragons. Transformada num pop dançante, com slide guitars, wah-wah, coral soul e uma incursão pelo raggamuffin. Ganhou as paradas e tocou até cansar nas rádios brasileiras. É a cara do início dos 90's.



(I Can't Get No) Satisfaction

DEVO
(1978)
Quem ouve a versão absolutamente genial do Devo para "Satisfaction" não poderia imaginar que no futuro o riif feérico de Keith Richards seria usurpado pela publicidade para vender todo tipo de porcaria. Mark Mothersbaugh, no auge, implode as convenções e transforma o clássico sessentista numa pérola da maluquice funk-new wave. Um dos melhores covers de qualquer coisa em qualquer época.



Honky Tonk Women
THE POGUES
(1988)
Canção escrita por Mick e Keef numa fazenda do Mato Grosso (!) em fins dos anos 60. Richards lembra que quando dava descarga no banheiro do lugar, dezenas de sapos pretos subiam boiando na água... O ambiente influenciou para que a música soasse como um country à la Hank Williams, mas mudou com os arranjos do recém-chegado Mick Taylor. A versão do Pogues, por sua vez, traz uma mistura do que eles sempre fizeram de melhor: irish folk com pegada punk. Na versão de estúdio, quem canta é o guitarrista Spider Stacy. Já naquela época, o lendário Shane MacGowan estava em condições lamentáveis para gravar.


Coven - Quando o diabo era pop

Na primeira metade dos 80's, uma coleção de figurinhas chamada Stamp Color fez um baita sucesso entre a molecada. Colávamos as figurinhas no armário, nos cadernos, na janela do quarto.

Stamp Color era uma viagem com ilustrações ao estilo do peruano Boris Valejo e capas de rock. Me lembro bem das figurinhas de "Love Hunter", do Whitesnake, e "Some Enchanted Evening", do Blue Öyster Cult.

Mas teve uma, em especial, que passou boa parte do ginásio colada na minha prancheta: "Blood on the Snow", do Coven. Eu não sabia do que se tratava, mas achava a capa do disco incrível: um diabão vermelho tocando violino.

Lá pelos 15 anos de idade, eu já ouvia Venom e Mercyful Fate, bandas reconhecidamente fascinadas pelo capeta, mas nunca topei com o tal disco do Coven. E olha que, nos anos 80, vi e ouvi praticamente tudo que existia de metal underground.

Décadas se passaram e "Blood on the Snow" virou apenas isso: uma memória apagada da pré-adolescência sobre uma capa de disco bacana. Nunca li nem ouvi nada do Coven em todos esses anos.

Bem, até recentemente...


Lendo um ensaio sobre satanismo no rock, me deparei várias vezes com o nome dessa banda de Chicago. Recorri à internet para tirar a dúvida e, sim, tratava-se do mesmo Coven. O fascinante da história é que o grupo, absolutamente esquecido, foi precursor de um monte de coisas que viriam a ser associadas à cena (black) metal surgida nos 80's.

O primeiro álbum do Coven, com o radical título "Witchcraft Destroys Minds and Reaps Souls" (em tradução livre: "Bruxaria destrói mentes e estraçalha almas"), foi lançado em 1969 - um ano antes da estreia do Sabbath! Mais incrível ainda é que o baixista dos caras chamava-se Oz Osborne e eles tinham uma canção intitulada "Black Sabbath". Dá pra acreditar?

O Coven só não tomou dos ingleses mesmo a invenção do heavy metal. A cantora Lynx Dawson tem uma voz tão parecida com a de Grace Slick, que parece que estamos ouvindo Jefferson Airplane. O elemento satânico chega a soar deslocado.

Mas o resto eles fizeram antes que todo mundo: foram fotografados fazendo o sinal do capeta e usando crucifixos invertidos. Mesmo com o ocultismo em voga, ninguém havia ligado o satanismo ao rock'n'roll de forma tão gráfica e explícita.

Só mesmo a porralouquice dos anos 60 para explicar que uma grande gravadora como a Mercury botasse dinheiro num disco que terminava com uma missa negra de 13 minutos regida por um ministro da Church of Satan. Suicídio comercial é pouco.

Ou talvez os executivos achassem que estavam antenados com a vibe mística que dominava a cultura pop. Afinal, eram os tempos em que Aleister Crowley havia sido redescoberto, tornando-se alvo de interesse de Jimmy Page e dos Beatles.

O diabo estava na moda.

Mas o álbum de estreia do Coven teve o pior timing possível: foi lançado no mesmo ano em que a atriz Sharon Tate, grávida de nove meses, foi brutalmente assassinada pela Família Manson. Roman Polanski, seu marido, havia dirigido apenas um ano antes "O Bebê de Rosemary", filme que mostra o triunfo do coisa ruim sobre uma jovem moça grávida.

Os crimes conhecidos como Tate-LaBianca abalaram a classe artística e são tratados como um dos eventos que encerra definitivamente a utopia sessentista. E o Coven ficou perdido nesse limbo. É de se supor que o satanismo, até então tratado com uma variação da cientologia, tenha começado a parecer realmente perigoso.

Mas o Coven teria ainda seus 15 minutos de fama regravando -dizem que a contragosto- uma canção pop pacifista chamada "One Tin Soldier". Pelo que consta, a música, ainda hoje, é muito executada em rádios de classic rock na América.

Os integrantes do Coven, que juravam estar mesmo engajados na adoração ao tinhoso, gravaram dois outros discos nos anos 70 - um deles o tal "Blood on the Snow" que, por décadas, foi um absoluto mistério para mim.

A faixa-título do álbum, essa, sim, uma sonzeira da pesada, foi transformada num estiloso video-clipe, em tempos que isso sequer existia. Sim, o Coven gostava de inovar.

Sabe-se lá quem foi o brazuca que teve a ideia de transformar a capa desse disco sombrio numa figurinha pra adolescentes. Sem querer, abriu o portal para uma das histórias mais obscuras do rock.

Obra do demo?


Enfim, "Blood on the Snow": viagem lisérgica pelo inferno

LEIA MAIS: Black Metal - Porque o diabo ainda é pop

Como o Monster Magnet inventou Dave Wyndorf

Penetrar na mente de artistas que criaram obras complexas e originais sempre foi o desejo de jornalistas culturais, fãs e outros criadores. É como se ouvir o autor falar de seu trabalho nos desse acesso a uma chave para entender todo o processo criativo e um pouco mais.

Já tive esse tipo de curiosidade sobre gente tão diferente quanto Frank Zappa e David Lynch. Nesses casos específicos, tive sorte. Há livros e entrevistas de sobra a respeito dessas figuras.

Mas e quando o interesse recai sobre um artista bem menos popular? Posso dizer que no caso de Dave Wyndorf, líder do Monster Magnet, as informações disponíveis não são lá grande coisa.

Um dos maiores cantores do rock nos últimos 30 anos, letrista singular e compositor de finíssima estirpe, Wyndorf não é exatamente um astro. Ao contrário, seu talento gigantesco se esconde hoje no circuito underground que restou para o ainda poderoso Magnet.

Em 2004, tentei, eu mesmo, entrevistar Dave e arrancar dele algumas revelações sobre suas letras indecifráveis que juntam Stonehenge com Vietnã, bruxaria com alienígenas, e a sonoridade que transita entre space rock lisérgico, baladas viajandonas e hard rock mundano. Consegui apenas uma entrevista com seu braço direito, o talentoso guitarrista Ed Mundell.

A névoa de mistério sobre o xamã espacial continuava.


Ouvi coisas engraçadas sobre Wyndorf e que jamais comprovei. Um amigo, que é colecionador compulsivo e fã de stoner rock, me disse certa vez que Dave tinha fundado uma religião. Achei a história incrível, mas, varrendo a internet, não encontrei uma linha a respeito. Folclore, claro, mas bem que podia ser verdade.

Há alguns dias, ouvi, enfim, uma boa entrevista com Dave Wyndorf. Aconteceu faz pouco mais de dois meses e foi concedida a ninguém menos que Tom Scharpling, o produtor da popular série de TV "Monk".

Wyndorf conta histórias curiosas, algumas até bem engraçadas, mas revela-se um cara mais comum que se poderia supor. Por trás da fachada de deus do stoner rock, esconde-se um fã de música que descobriu Hawkwind e Stooges no início dos anos 70 e alimentou sua imaginação com pilhas de gibis de super-heróis. Aos 56 anos, continua um fanático por rock e quadrinhos; algo reminiscente aos personagens dos filmes de Kevin Smith, não por acaso também moradores de New Jersey.

Dave mora na mesma casa em que nasceu e, hoje, está longe de ostentar aquele visual que misturava a fuça de um bandido mexicano com o shape de Iggy Pop. Era o rock'n'roller por excelência. Passados alguns anos de uma overdose quase fatal, Dave parou com as drogas, mas ganhou um peso que não condiz com o personagem.

Assim, o criador é desconstruído, sai de sua névoa de mistério, mas revela-se, por outro lado, um artista ainda mais incrível. David Albert Wyndorf fundou o Monster Magnet e criou junto o Dave Wyndorf que nós queríamos que existisse.

Ele desmistifica, por exemplo, a ideia de que a obra do Magnet tenha sido escrita à base de drogas alucinógenas. Diz que apenas juntou tudo que gostava num único projeto musical: ficção científica barata, pré-punk, biker movies, gibis, space rock e psicodelia.

Sua prosa desenrolada, com a voz grave e um tanto rouca, é boa de ouvir. Ele relembra, às gargalhadas, um encontro bizarro com Gene Simmons no CBGB's em meados dos 70's. Conta que sua primeira banda, Shrapnel, empresariada por Legs McNeil, futuro autor de "Mate-me por favor", chegou a tocar numa festa na casa do escritor Norman Mailer e que Woody Allen estava entre os presentes.

Dave lembra também da tímida pressão da gravadora por melhores vendagens e de ter respondido: "Hey, meu trabalho é compor e gravar, vocês é que têm que vender. Querem o quê, que eu enfie mulher pelada e dinheiro na capa dos discos?". Parou, pensou e viu que, na brincadeira, tinha sacado uma ótima ideia.

Nascia "Powertrip", classicaço de 1998 e único álbum do Magnet a ganhar um disco de ouro.

Longa vida a Dave Wyndorf.


Clipe de "Medicine", pedrada do primeiro disco do Monster Magnet, de 1992. Atemporal.

Shaft nunca mais: R.I.P., Charles "Skip" Pitts

Um dos grandes guitarristas do planeta saiu de cena na última terça-feira, dia 1º de maio, sem muita repercussão. Charles "Skip" Pitts morreu aos 65 anos, de câncer no pulmão.

Skip foi um dos mais requisitados músicos de estúdio nos anos dourados da lendária gravadora Stax e braço direito de Isaac Hayes por várias décadas. Sua mais famosa contribuição é tão sutil quanto emblemática: o riff de "Theme from Shaft", canção de Hayes que levou o Oscar em 1972.

Já foi dito aqui antes -e muito possivelmente em outros lugares-, mas é justo repetir: a guitarra com wah-wah na introdução do tema conseguiu encapsular em poucos segundos toda uma época. É como se soul, funk e todos os filmes de blaxploitation pudessem ser explicados com um único som. Incrível.

Como costuma acontecer, a história por trás da criação atemporal revela a presença do improviso. Skip contou à revista Guitar Player como surgiu o famoso riff.

"Aquele trecho de 'Shaft' foi criado porque Isaac precisava de algo pra servir de condução para o início do filme (...). Eu estava checando os meus pedais. Testei meu overdrive, meu reverb, o box Maestro, e então eu comecei com o wah-wah. Isaac parou tudo e disse: 'Skip, o que é que você está tocando?'. Eu respondi: 'Estou apenas afinando'." E ele disse: 'OK, continue tocando, mas agora em Sol maior'".

Além de Hayes, o guitarrista também teve seus préstimos requisitados por outros artistas da pesada como Al Green, Albert King e Wilson Pickett.

Apesar da saúde debilitada, Skip continuava na ativa com sua banda de jazz/soul Bo-Keys. Sua última apresentação em público aconteceu na noite de revéillon.

Shaft, nunca mais.


Charles "Skip" Pitts e os Bo-Keys tocam o tema de Shaft em 2010

Porque sua banda radical favorita é música de ninar

Em meados dos anos 90, trabalhei brevemente com um amigo que alimentou um sonho impossível: manter uma distribuidora de discos especializada nos selos mais originais do planeta. Da inglesa Recommended Records até os títulos casca-grossa da obscura Cenotaph, passando pelos lançamentos menos óbvios da celebrada SST.

No meio das importações, chegavam caixas abarrotadas de LPs e CDs de selos menores e que revelavam artistas ainda mais radicais e complexos. Cada disco, uma surpresa.

Claro que o projeto sucumbiu diante da então incipiente cena alternativa local, mas muitos daqueles discos -vendidos em sistema de mailorder- foram parar em cantos esquecidos do Brasil e fizeram a cabeça de fãs de música pouco ortodoxos.

Apresento abaixo um Top 5 com as estrelas da companhia. Ouça por sua conta e risco, e descubra que sua banda radical favorita pode parecer brincadeira de criança.


Bob Ostertag
Excêntrico manipulador de sons, Ostertag já se meteu com John Zorn e Mike Patton, e quase nada do que produz é palatável. O disco "Sooner or Later", de 1991, é uma bizarrice sem tamanho: mais de 40 minutos em que trechos do funeral de um guerrilheiro salvadorenho são reorganizados em várias combinações: uma criança chorando, pás cavando o túmulo e moscas sobrevoando o defunto. Lá pelo meio do disco, uns 20 segundos de guitarras tortas de outro maluco: Fred Frith, do Massacre e Naked City.


Sudden Infant
Projeto ultra-experimental do artista suíço Joke Lanz que é apreciado por umas 14 pessoas no mundo. O primeiro disco do Sudden Infant data do início dos anos 90 e se chama "Radiorgasm". Trata-se de uma sinfonia tonitruante de microfonias e ruídos de estática. A capa traz uma ilustração desagradável de gêmeos siameses. Foram prensadas 300 e poucas cópias do disco e depois, com o advento da internet, "Radiorgasm"ganhou alguma sobrevida. Lanz continua explorando possibilidades radicais com o Sudden Infant em intervenções artísticas por museus e galerias da Europa e EUA.


Zoogz Rift
Perambulou pela gravadora SST nos anos 80 e gravou uma penca de álbuns alucinados com uma banda de apoio de delinquentes musicais - os Shitheads. Guitarrista talentoso e compositor torto com predileção por arranjos irritantes, Zoogz Rift era também um campeão em criar títulos de discos: "Island of Living Puke" e "Idiots on the Miniature Golf Course" são algumas de suas pérolas. Maluco que só ele, entrou de cabeça no mundo da luta-livre estilo marmelada, ambiente no qual teve algum reconhecimento. Dizem que foi enxotado por Frank Zappa quando apareceu, devidamente imundo e esfarrapado, na casa deste. Editei a única entrevista de Zoogz para a imprensa brasileira, na qual o sujeito desanca Zappa e discorre sobre sua composição física ("98% do meu corpo é formado por água"). Morreu aos 57 anos de complicações causadas pela diabetes.


Wesley Willis
Cantor afro-americano portador de esquizofrenia crônica e que transformou-se em herói cult na cena alternativa. Suas letras bizarras, repletas de nonsense e obscenidades, versavam sobre super-heróis, fast food e outros músicos, sempre pontuadas por slogans de alguma marca conhecida. A música variava do punk rock primal a melodias deliciosamente esculhambadas sob o som de algum teclado de brinquedo. Outra curiosidade sobre Willis é que ele cultivava um tremendo galo na testa por conta de seu famoso cumprimento que consistia em dar uma cabeçada na testa de seus fãs e amigos. Morreu aos 40 anos, vítima de leucemia, e deixou um legado de mais de 50 álbuns.


Damião Experiença
Já imaginou se Captain Beefheart inventasse de regravar "Tim Maia Racional" à sua maneira e com Sun Ra de produtor? Pois bem, um baiano radicado no Rio de Janeiro chegou perto do som que provalvemente resultaria dessa combinação surreal. Artista radical e idiossincrático, Damião autofinanciou uma obra sem paralelos na música brasileira. Seus quase 30 discos têm capas aleatórias e boa parte do repertório é cantado no dialeto imaginário de seu Planeta Lamma. Aos 77 anos, vive numa favela do Rio e faz raras e pontuais aparições. É cultuado por um público jovem que o descobriu na internet.


Bob Ostertag & Fred Frith ao vivo: música também é isso


Confirmado: Sudden Infant não vai se apresentar no próximo SWU

Disco ao vivo é razão de existir do Saxon

Há algumas semanas, um amigo resolveu vender sua coleção de CDs. Aproveitei a liquidação para garimpar algumas relíquias.

Achei barganhas como o primeiro do Naked City a 10 pratas e o crocante "Eat 'em and Smile", do David Lee Roth - um dos meus feelgood albums favoritos.

Entre as aquisições nostálgicas, um item me surpreendeu: "The Eagle Has Landed", disco ao vivo do Saxon, gravado em 1982.

Passei toda a adolescência sem ouvir sequer um LP de estúdio desses decanos do metal britânico. E até hoje continuo sem ouvir. Mas em 1986, com meus 15 anos de idade, talvez motivado pelo clipe de "Power and the Glory", que rolava direto no programa Clip Trip, comprei o famoso álbum ao vivo. Rodou no meu toca-discos até cansar e passou os útimos 20 anos repousando numa prateleira.

A faxina na coleção de CDs do camarada serviu pra me revelar outra vez esse momento de rara inspiração em plena febre da NWOBHM (New Wave of British Heavy Metal).

Ouvir "The Eagle Has Landed" em 2012 é grata surpresa. Incrível notar como o Saxon, na época, se parecia com um primo mais melódico do Motörhead. Muitos riffs e arranjos parecem escritos pelo próprio Fast Eddie Clark. É rápido, sem firulas e tem solos bacanas. Biff Byford não tem a voz pigarrenta do Lemmy e soa como um herdeiro contido do hard rock original.

Apesar das ridículas calças Spandex, que resultaram em chacotas sem fim da revista inglesa Kerrang, Byford tinha até certa elegância no cantar.


Vocalista e banda se superam em "747 (Strangers in the Night)", um delicioso hard rock que fala sobre uma pane área que separa um casal. O refrão meio tristonho deve ter acompanhado as madrugadas de muitos metalheads no início dos anos 80. Dá até pra imaginar "747" reproduzida com o chiado de alguma estação de AM. Combina.

O resto do álbum mantém o pique e desfila canções boas -e às vezes muito boas- como "Motorcycle Man", "Princess of the Night", "Wheels of Steel" e as pedradas "Machine Gun" e "20,000 ft".

Essa inesperada redescoberta do Saxon me levou a espiar a internet atrás das gravações originais do repertório que virou "The Eagle Has Landed". Tá certo que lá se vão mais de 30 anos, mas a sensação é de certa decepção: no estúdio, alguns maneirismos vêm à tona e Byford, com a voz em primeiro plano, faz desnecessários floreios vocais. Aquelas músicas nunca soaram tão bem quanto nos shows.

Depois de "Eagle", o Saxon entrou em parafuso. Perambulou pelo metal farofa, adotou roupas de lantejoulas, voltou ao couro e chafurdou na chatice épica. Passo bem sem.

Mas vale menção honrosa para esse que é um dos melhores discos do heavy metal tradicional britânico. Estranhamente, é como se a razão de existir do Saxon tenha sido registrar aquele abençoado show de 1982 e garantir uma página na história.


"747 (Strangers in the Night)" em 1983: não tão boa quanto em "The Eagle Has Landed", mas ainda cativante.

Garbage no Brasil em 2012. Por que não?

Certa vez uma amiga me disse que não via muita diferença entre Garbage e Britney Spears. Suponho que estivesse dizendo que a banda era tão desprovida de verdade quanto a então estrela teen.

A comparação é esdrúxula, mas entendo. O Garbage é bom e comercial demais pra não parecer armação.

Surgiram no music business como a banda de Butch Vig, o notório produtor de "Nevermind", do Nirvana. Apoiada na credibilidade de Vig, a figura central do grupo era uma cantora escocesa com pinta de modelo de comercial de perfume. De desconfiar.

A sonoridade combinava com tudo isso. Capturou as mudanças de rumo dos anos 90 e herdou as guitarras pesadas do início da década, colocando-as a serviço de uma música pop mezzo eletrônica. Tempos em que também Prodigy, Massive Attack, Björk e Asian Dub Foundation assinavam uma espécie de trilha do fim do milênio.

O Garbage soava como a música mais cosmopolita que podia existir. Dançante, mas com punch. Shirley Manson era ótima de fotografar e melhor ainda de ouvir. No estúdio, criaram canções friamente estudadas, com loops e texturas sofisticadas.


Os dois primeiros álbuns do Garbage foram um estouro. Tocaram e venderam demais. "Only Happy When it Rains", "Stupid Girl", "I Think I'm Paranoid", "Push It". Um hit atrás do outro. E um melhor que o outro.

As canções ganharam vida própria. Me lembro de uma citação bizarra, da atriz Bruna Lombardi, então apresentadora de um programa de entrevistas chamado "Gente de Expressão". Num papo com o grande Richard Wright, tecladista do Pink Floyd, perguntou sobre a influência do clima frio e chuvoso sobre o rock britânico e citou "Only Happy When it Rains" - creditada como uma música do Soundgarden...

Depois de dois discos arrebatadores, o Garbage assinou "Beautiful Garbage", em 2001, e "Bleed Like Me", em 2005. Nenhum deles repetiu o sucesso dos anteriores e a banda entrou num hiato indefinido.

O contexto cultural que amparou o surgimento da banda nos anos 90 não existe mais. A música mudou, o consumo se segmentou e, salvo Coldplay ou alguma porcaria R&B sem gingado, é difícil mensurar o que é hoje, de fato, popular.

Mesmo assim, e espero que motivados pelo genuíno desejo de voltarem a ser grandes artistas, o Garbage anunciou o fim de sua longa hibernação. No mês que vem sai "Not Your Kind of People", quinto álbum de estúdio e o primeiro em 7 anos.

Talvez por isso, o canal Multishow HD andou exibindo um show do Garbage, da turnê de "Bleed Like Me". Se não viu, recomendo. O show rola num lugar aconchegante -espécie de versão reduzida do Via Funchal- e é incrível atestar como aquele som gerado em estúdio funciona bem ao vivo.

A sofisticação pop com ataque de guitarras e letras de rebeldia chic sobre sexo e relacionamentos paranóicos é singular. E envelheceu melhor do que quase tudo gravado na época.

Taí uma ideia para os produtores de shows: Garbage no Brasil em 2012. Por que não?


"Push It": em 1998, um clipe e uma música dessas faziam sucesso. Dá pra acreditar?

John Zorn e Naked City: não é o jazz do seu pai

John Zorn esteve em São Paulo há uma semana com sua banda Masada. Não pude ir ao show, fato pelo qual devo me penitenciar pela próxima década e meia.

Entre os músicos relevantes no planeta, Zorn é certamente o mais prolífico. Grava sem parar e mantém um nível assombroso de qualidade. Onde aparecer sua assinatura, vá em frente sem medo.

O primeiro contato que tive com o saxofonista novaiorquino foi em meados dos 90's, através do disco de estreia da banda Naked City. Um quinteto da pesada, integrado por músicos de carreiras estabelecidas, como o guitarrista Bill Frisell e o baterista Joey Baron, seguiu pela ideia torta de John Zorn de misturar jazz com colagens de trilhas sonoras, country, surf music, música clássica e uma pegada punk-grind.

Nesse sentido, trata-se de um álbum definidor: estabelece a ponte entre o senso comum de sofisticação com a brutalidade juvenil de um subgênero underground. Não é jazz-rock coxinha para público que gosta de moderação.

Zorn foi dos primeiros a enxergar valor artístico em estilos nada palatáveis e dominados pela testosterona como death metal e grindcore. Escreveu a respeito, explicou as escalas, os timbres, a afinação. Tornou-se um fã confesso.


Conceituadíssimo, foi convidado em 1989 a se apresentar no Free Jazz Festival, importante evento que fez parte do calendário de shows de São Paulo e Rio por mais de 15 anos. Zorn veio com o Naked City no auge da forma e subverteu, de cara, a figura do jazzista pra publicitário ver: apareceu na coletiva de imprensa do festival trajando uma camiseta da banda americana de crossover thrash The Accüsed.

Assisti ao show há muitos anos num velho VHS e me diverti com a cara de pastel do público brazuca da época: ninguém entendeu lhufas.

Dali pra frente, Zorn e o Naked City radicalizaram ainda mais na forma, ilustrando seus discos com fotos barra-pesada de S&M e apresentando dezenas de temas de jazz-grind que mal atingiam um minuto de duração. Zorn também deve ter se divertido bolando títulos hilários como "Sack of Shit", "Speedfreaks", "Pigfucker", "Igneous Ejaculation" e outros. O Naked City tinha humor.


John Zorn ainda se meteria em outra empreitada barulhenta com o trio Painkiller, cuja formação inusitada trazia o notório músico e produtor Bill Laswell no contrabaixo e o baterista Mick Harris, ex-Napalm Death.

Há muitos anos, li uma entrevista de Harris numa revista de bateria. Ele revelou que estava um pouco inseguro quando chegou ao estúdio para gravar com um músico da estatura de John Zorn. Quis conhecer o repertório pra saber como poderia tocá-lo de seu jeito, ao que Zorn respondeu: "Mas não tem repertório. Você toca o que quiser e a gente te acompanha".


Naked City ao vivo com o aloprado japonês Yamatsuka Eye, o sexto elemento da quadrilha

A elegância de Bill Ward e o pior do Sabbath

Agorinha há pouco, Bill Ward tornou-se, por poucos minutos, um dos assuntos mais falados do Twitter no Brasil. Achei, honestamente, que o lendário baterista tivesse morrido -já teve dois infartos antes-, mas está vivo, ainda que amargurado.

Ward, ao que tudo indica, não vai mais participar da volta do Black Sabbath. Isso o exclui, automaticamente, de gravar o novo disco e sair em turnê com a banda. Motivo: ele não concorda com as condições contratuais e se diz escaldado por ter topado coisa semelhante no passado.

Como em todo tipo de negócio que envolve dinossauros do hard rock, os egos são gigantescos e a capacidade de fazer burradas é histórica. A carreira do Sabbath está repleta de oportunidades desperdiçadas por vaidade e falta de visão. Essa reunião de 2012 se encaminha para ser mais uma delas.

Sem acesso a detalhes do contrato, é fácil escolher um lado da história. Bill Ward é um cara sentimental e protagonista de pequenas e desconhecidas histórias de generosidade.

No começo da internet, li um depoimento no fórum de seu website que jamais esqueci: um fã relatava que, quando esteve por meses numa cama de hospital, escreveu uma carta para Ward e recebeu, como resposta, uma fita cassete gravada por Bill em que falava sobre seus próprios percalços e dava força para o fã sair da depressão.

Agora, dá para imaginá-lo brigando com o Sabbath por dinheiro à essa altura da vida?


Em 1990, Bill lançou seu primeiro disco solo: "Ward One: Along the Way". Comprei no ato. É melhor que qualquer coisa que seu ex-colegas fizeram depois que o Sabbath se desintegrou.

"Along the Way" é tão bom justamente por não ser nada óbvio. Bill sequer toca bateria em algumas faixas e apresenta uma elaborada paleta de sons. De baladas e climas atmosféricos -com sintetizadores, efeitos e percussão- a um tipo de rock clássico que ganha muito com a inestimável participação de Jack Bruce, do Cream. A canção "Tall Stories", em que Jack e Bill dividem os vocais, e ainda com a presença da cantora de R&B Lorraine Perry, é de chorar.

O velho comparsa Ozzy Osbourne também canta em "Jack's Land" e "Bombers (Can Open Bomb Bays)", mas consta que as duas faixas não foram liberadas para futuras reedições do álbum.

A enorme e sórdida possibilidade que Sharon Osbourne tenha colocado obstáculos burocráticos num projeto delicado como "Along the Way" apenas reforça a ideia de que Ward, em 2012, deseje tratamento mais nobre do que ser um simples empregado na engrenagem comercial por trás da nova reunião.

Talvez o Sab deveria fazer apenas uma grande e derradeira turnê nostálgica, sem disco novo nem nada, e encerrar com dignidade uma obra que, em seu período fértil, gerou uma das mais assombrosas discografias do rock.

Por isso que, nessa briga, fecho com Bill Ward. E você?


Clipe promocional do álbum "Along the Way": Bill e Oz já foram mais felizes

O drama e a fúria de Anna Calvi

O ano de 2011 na música pop foi das mulheres.

O reinado do R&B vagabundo americano vai muito bem, obrigado. Suas estrelas nunca rebolaram tanto, nem ganharam tanto dinheiro. Na matriz, a morte de Amy Winehouse a transformou imediatamente em ícone e Adele está há trocentas semanas no topo das paradas.

De quebra, PJ Harvey sacodiu a poeira e gravou um dos discos mais aclamados de sua carreira: o poderoso e minimal Let England Shake. Com Polly Jean, não tem erro.

Em meio a tudo isso, houve espaço pra surgir um talento que roubou o brilho: uma inglesa, filha de pai italiano, chamada Anna Calvi. Seu primeiro disco saiu há exatamente um ano e a crítica o colocou no pedestal.

Mas, pelo menos por enquanto, você não vai ouvir Anna Calvi no rádio ou na trilha sonora da novela, ainda que a combinação da beleza gelada com o talento assombroso seja combustível suficiente para fazer dela uma estrela.


A adulação dos fashionistas de Paris é um primeiro sinal de aceitação e pode até repelir o público que desconfia desse tipo de associação marota. Mas não se engane: se Calvi teve seus préstimos requisitados pelo povinho da moda, é porque pouca coisa hoje soa tão cool.

Cantora de voz marcante, interpretações dramáticas e sem maneirismos neo-soul, é claramente inspirada por gente como Leonard Cohen, David Bowie e Elvis. Como Reverend Horton Heat, regravou também a eterna "Jezebel", de 1951, numa pista que mostra por onda anda seu imaginário.

Mas Anna Calvi é também guitarrista de fina estirpe. Suas incursões pelo vibratto surf remetem ao bad ass Link Wray e, mais ainda, ao mestre dos mestres, Ennio Morricone. É como se Calvi estivesse desfiando os nós deixados pelo maestro há 50 anos só pra que sejam, a seu devido tempo, surrupiados por Quentin Tarantino para alguma trilha imaginária.

O drama e a fúria de Anna Calvi são algo do melhor que 2011 nos deixou.


"Blackout": uma das grandes canções do disco de estreia de Anna Calvi


A bela e david-lynchiana "Suzanne And I"