Ninguém tem mais autoridade e talento para recriar a Nova York
perigosa e decadente da década de 1970 que Martin Scorsese. Poucos
realizadores têm em seus créditos documentários musicais com o peso
histórico de "No Direction Home", sobre Bob Dylan, ou a série "Blues". E
ainda está para surgir quem filme melhor o universo masculino de poder,
drogas, dinheiro e excessos -e o reflexo disso na estrutura
familiar- do que o cineasta ítalo-americano.
Todos esses elementos que notabilizaram a preciosa
filmografia de Martin Scorsese -ele próprio um fã de rock que ouvia The Clash a todo volume durante as gravações de "Touro Indomável"- estão agora a serviço de "Vinyl". A série,
concebida e produzida por Mick Jagger, estreou há dois dias na HBO e é ouro puro.
O
roteiro mescla espertamente personagens e situações fictícias com
alguns protagonistas históricos do rock, tecendo uma história que
remonta a
fase dourada da indústria fonográfica e também o 'modus operandi' de
executivos, agentes, empresários e radialistas. Cada detalhe tem a
elegante assinatura de Scorsese. A sede da gravadora American Century,
por exemplo, e mais ainda seu time de excêntricos funcionários, remete
imediatamente ao ambiente escandaloso de "O Lobo de Wall Street". Mas
aqui, ao invés de um yuppie cocainômano e inescrupuloso no comando dos
negócios, temos o executivo Richie Finestra (Bobby Canavale), um sujeito
com 20 anos de experiência na indústria do disco e cuja caracterização
terminou lembrando o famoso empresário do show business Bill Graham.
"Vinyl" tem
como ponto de partida uma negociação milionária articulada por Finestra e
seus comparsas com a gigante alemã PolyGram. No processo, os
americanos acenam aos germânicos com a possibilidade de um bilhete
premiado: a contratação bombástica do Led Zeppelin.
O
que se segue é uma montanha russa de acontecimentos regados a álcool e
cocaína, com um Peter Grant -notório empresário do Led Zep- enlouquecido
e quebrando tudo e um Robert Plant afetadíssimo. Para os fãs da banda
inglesa, vale também pela ótima reconstituição dos bastidores do show no
Madison Square Garden e que deu origem ao filme "The Song Remais The Same".
Richie Finestra tem ainda que contornar uma trapalhada de Donny Osmond,
artista de seu elenco, e evitar o boicote de uma rede de estações de
rádio. Em meio a isso, em outra subtrama, somos apresentados ao
antagonismo do punk novaiorquino via The Nasty Bitz, banda imaginária
liderada por Kip Stevens (interpretado por James Jagger, filho de Mick).
Há ainda flashbacks sobre o cantor de blues Lester Grimes (Ato
Essandoh) e que funcionam para ilustrar as armações e a truculência de
empresários do ramo fonográfico.
Obcecados por história
do rock vão enlouquecer pinçando as referências a bandas, empresários e
situações ocorridas no período. Tem desde a guitarra quadrada de Bo
Diddley ao então emergente grupo ABBA, passando por Otis Redding, Ruth
Brown, Chris Kenner, England
Dan & John Ford Coley, Ahmet Ertgun, David Geffen, Lester Bangs
e o que parece ser o diabólico executivo Ray Romano. A tradução
brasileira oculta ainda uma citação engraçada ao grande Captain
Beefheart.
"Vinyl" tem festas de
arromba, reuniões tensas sob nuvens de fumaça, sacanagem em jatinhos
particulares, orgias e até assassinato e ocultação de
cadáver. A cena final, com um show alucinante dos New York Dolls e o simbolismo da implosão do rock clássico, é
desde já um dos momentos antológicos em séries de TV nos últimos anos.
Não perca por nada.
Para quem perdeu, a HBO está disponibilizando o primeiro episódio -com duas horas de duração- na íntegra
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