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Um Oscar para Kira Roessler, do Black Flag

Aconteceu no último domingo, em Los Angeles, a 88ª edição do Oscar. Uma audiência de alardeados 900 milhões de telespectadores aguentou as torturantes quatro horas e meia do evento para assistir aos discursos xaroposos de sempre e todas as piadinhas sem graça que vimos em edições anteriores.

A surpresa da vez, para os aficionados por música, mais especificamente punk rock, foi o Oscar para Melhor Edição de Som. Ganharam Mark Mangini e David White. O primeiro é um sujeito com 40 anos de experiência no cinema e que chegava à sua quarta indicação na categoria. O segundo, menos conhecido, é um designer de som cujos créditos computam 27 produções, entre curtas, longas e documentários.

O que poucos sabem é que havia no departamento som de "Mad Max: Estrada da Fúria", que também levou a estatueta de Melhor Mixagem de Som, uma certa engenheira de áudio chamada Kira Roessler.


Formada pela UCLA na década de 80, Roessler trabalhou como editora de diálogos em filmes como "Confissões de uma Mente Perigosa",  "Crepúsculo: Lua Nova" e muitos outros. E já arrebatou um prêmio Emmy por seu trabalho na minissérie de TV "John Adams". Antes de tudo, no entanto, ela ficou conhecida de punks e fãs de música underground como Kira, a baixista do seminal Black Flag.

Ainda sobre seu trabalho no cinema, ela explica, em entrevista ao zineiro Mark Prindler, em 2003: "Eu trabalho mais com edição de diálogo, algo que as pessoas não costumam entender o que é. Sabe quando eles não gravam [uma cena] com som direto, e juntam tudo no processo de edição? Então, quando o material chega até mim, está todo bagunçado e ferrado, e é meu trabalho 'limpar' o som. Eu faço muitos consertos no áudio. Tipo, quando há um problema com uma palavra, eu posso substituí-la por uma sílaba de outro 'take' ou algo assim. Em um nível muito preciso de detalhe, eu faço o som dos diálogos soar tão bem quanto possível".

Kira Roessler integrou uma das mais importantes encarnações do Black Flag, ao lado do chefe Greg Ginn, do lendário vocalista Henry Rollins e do prolífico baterista Bill Stevenson (das bandas Descendents e ALL). Foi admitida em 1983, em lugar de Chuck Dukowski, e permaneceu com o grupo até 1985. Sobre seu ingresso na banda, ela relembra: "O relacionamento [de Greg] com Chuck era bom. Não havia conflitos de personalidade. Mas ele tinha um estilo como baixista que estava começando a ir contra o que Greg estava tocando. Então, você sabe... Eu ensaiei com eles uma vez e me disseram: 'Yeah, é isso que queremos. Precisávamos de alguém que tocasse desse jeito'. Eu só posso descrever 'esse jeito' pela forma como eles tocavam na época - é quase como se você pulasse e galopasse na frente e na frente da batida, ou que realmente ficasse por trás e por trás e por trás da batida. E meu estilo foi sempre esse de ficar atrás, e calhou de ser o que eles estavam procurando. No meu caso, por outro lado, [a saída da banda] foi mais uma questão de personalidade, de eles não quererem tocar mais comigo. Ou pelo menos foi o que soube por Chuck Dukowski quando me chutaram da banda".

No ano seguinte à demissão de Kira, o Black Flag encerraria as atividades de sua fase clássica. Os registros do grupo com a participação da baixista são numerosos. Quatro discos de estúdio -"Family Man", "Slip It In", "Loose Nut" e "In My Head"-, além de EPs, com o ótimo "Annihilate This Week".

Em seu livro "Get in the Van: On the Road with Black Flag", é perceptível que Rollins não era lá um grande amigo de Kira, embora admita que ela era talentosa e aprendeu o repertório da banda muito rapidamente. O vocalista tinha pouco em comum com a contrabaixista e eles quase não se falavam durante as longas e excruciantes turnês de furgão pelos Estados Unidos. Se reencontraram muitos anos mais tarde. "Temos uma certa camaradagem agora", Kira relembra. "Volta e meia nos falamos por email e é muito cordial e interessante. E [o reencontro] foi pura coincidência. Henry topou com meu irmão no estúdio e disse: ' Diga a Kira para me telefonar, quero que ela trabalhe em algo comigo'. Então cantei num show dele no Whisky A Go-Go e fiz backing vocals em algumas músicas, ao vivo".

Dois anos após deixar o Black Flag, Kira Roessler casou-se com Mike Watt, fundador do Minutemen e substituto de Dave Alexander na volta dos Stooges. Criou ao lado dele uma dupla muito peculiar, com dois contrabaixos, apropriadamente chamada Dos.

A baixista colaborou ainda com outros projetos de Watt, como a banda fIREHOSE, e compôs algumas faixas para o derradeiro álbum do Minutemen, "3-Way Tie".

Apesar de terem se separado em 1994, Kira e Watt admitem que continuam casados com o Dos. A dupla lançou seu último álbum -"Dos Y Dos"- há cinco anos, mas permanece ativa.





Caixa Preta Entrevista: Suicidal Tendencies (2005)

Com o objetivo de resgatar algumas importantes entrevistas que realizei na última década e meia, estreia agora no blog a série "Caixa Preta Entrevista".

Nesse 'post' inaugural, republico, na íntegra, a conversa que tive com Mike Muir, líder do Suicidal Tendencies. A entrevista, realizada por telefone, foi capa da edição nº 67 da revista Rock Press (reprodução abaixo) e realizada em ocasião do festival Claro Q É Rock. O Suicidal, escalado para se apresentar no evento, terminou cancelando sua participação por conta de um problema de saúde do próprio Mike Muir.

Confira abaixo o resultado da conversa com esse sujeito que fez história no hardcore, no thrash metal e que ainda aprontou com os funks do Infectious Grooves.

Você vem produzindo muita música de uns anos pra cá.  Seja com o Suicidal Tendencies, com o Infectious Grooves ou com seu projeto solo, Cyco Miko.  Isso tem alguma relação com o fato de você ter montado seu próprio selo?
MIKE MUIR – O mais irônico nisso é que, se ainda estivéssemos na Sony, teríamos mais material lançado, pois, hoje, gravamos muita coisa que não lançamos.  Quando você está numa 'major', você precisa gravar discos e eles te providenciam estúdio, te pagam por isso.  Você tem que cumprir todo um processo.  E agora nós temos nosso próprio estúdio e, até porque não precisamos lançar nada, vamos lá tocar apenas pela curtição.  Às vezes convidamos nossos amigos para tocar conosco e gravamos algumas coisas, mas sabemos que não temos obrigação de lançar aquilo.  Mas se estivéssemos na Sony, eles viriam até nós e diriam: “Hey, o que está havendo? Vocês precisam lançar um disco, precisam sair em turnê!’.  E como eu passei por uma cirurgia nas costas há um ano e meio, isso, de certa forma, nos impediu de excursionar.  Então, eu pensei: “É  melhor não lançar nenhum disco agora”.  Por causa disso, tivemos a possibilidade de compor muita música e pela simples razão de que gostamos disso.  Hoje em dia, quando queremos ir para o estúdio, não temos que gastar nada, mas antes tinha alguém pagando por isso.  A música não nos custa nada agora e isso evita que a gente tenha aqueles compromissos negativos.  O lado bom é que podemos compor porque gostamos, sem ter a preocupação de lançar alguma coisa.  Por outro lado, temos que negociar (o lançamento dos discos) com cada país separadamente e gastamos bastante tempo cuidando de negócios, quando preferiríamos estar apenas tocando.  Mas no fim das contas, estamos mais satisfeitos agora.

É uma sensação melhor do que estar numa 'major'?
MIKE MUIR – Sim. E o mais engraçado é que ainda tenho muitos amigos que trabalham para gravadoras, e eles sempre dizem: “Quando quiser gravar um disco, me telefone” (risos).  E alguns deles me falam: “Poderíamos conseguir algo, mas não sei você ficaria satisfeito.  As coisas mudaram, houve essa mudança louca (na indústria)…”.  E também há outros que dizem: “Vamos arranjar um contrato e eu te garanto que há muita gente aqui que ama a banda.  Podemos ir a departamentos de promoção e falar com todas as pessoas que viram vocês ao vivo antes de trabalharem aqui”.  Esse tipo de coisa.  Para nós, isso volta àquela questão: seria ótimo para agradar o ego, porque saberíamos que nossa música estaria sendo ouvida por muito mais gente.  Mas, pessoalmente, prefiro estar na posição que estou: dando essa entrevista para você, indo tocar num festival em que muita gente não saberá quem somos e onde vamos encontrar gente louca que ama o Suicidal (risos) ou aqueles que ainda eram muito jovens da última vez que tocamos aí, há oito anos.  Acontece muitas vezes de pessoas irem ver uma banda que gostam e nem sabem quem somos.  E após do show muitos deles já estão gritando (entusiasmado): “Suicidal! Suicidal!”.  Depois disso, eles começam a mostrar a banda para os amigos e…  Foi assim que eu me liguei em música!  Quando meus amigos gostavam muito de uma banda, eles sempre me apresentavam à música dela.  Mas agora, com a MTV e as estações de rádio comerciais, há muita gente, especialmente nessa onda de pop-punk, que começa uma banda hoje e vende 1 milhão de discos amanhã.  Infelizmente, esse é o objetivo deles.  Essa não é a nossa praia.  Lançamos nosso primeiro disco há 22 anos e ainda existe gente que o escuta.  Isso é mais importante.  Há muitos álbuns que saíram em 1983 e venderam bem mais que o nosso, mas os quais ninguém nunca mais comprou.  Preferimos que a música dê o recado.

Nos anos 80 vocês não eram a única banda que misturava hardcore, punk e metal.  Havia todo um contexto em que isso acontecia, com grupos com Excel, D.R.I, Corrosion of Conformity e outros.  Você sente que, hoje em dia, o Suicidal está sozinho ou faz parte de algum cenário?
MIKE MUIR – Veja só, quando nosso primeiro disco saiu, uma revista de punk disse: “Dane-se! Isso é metal”.  Quando o segundo álbum foi lançado, a mesma revista afirmou que nosso disco de estréia, que eles haviam dito ser uma droga, tinha se tornado, do nada, um clássico do punk rock e que, agora sim, nós tínhamos virado metal!  Aí o terceiro saiu e publicaram algo como: “Os dois primeiros eram tão bons, mas dessa vez eles se transformaram pra valer numa banda de metal” (risos).  Havia toda essa situação naquela época, mas nós não dávamos a mínima.  Durante todo aquele período, vimos muita gente mudar.  Banda convictas de metal passaram a usar calças spandex e maquiagem.  Nós nunca mudamos a maneira que nos vestimos ou nosso jeito de fazer as coisas.  Você pode notar nossa influência em muitas bandas, mas boa parte disso se perde no caminho.  Então, acho que éramos uma banda muito viável e o que vai acontecer nesse festival (no Brasil), é que, após o show, muita gente vai pensar: “Como eu nunca tinha ouvido falar dessa banda antes?”.  E alguém vai virar pra eles e dizer: “O primeiro disco dos caras saiu há 22 anos”.  E eles vão se surpreender: “Sem chance!  Eles não podem estar ser tão velhos!” (risos).  Então, é por aí… Nós não somos os Rolling Stones, que só estão dando umas voltas por aí.  Nós ainda estamos detonando, botando pra quebrar!  Quando perdermos esse pique, não teremos mais nada a dizer.

Você falou sobre a influência que o Suicidal exerceu sobre outras bandas e realmente é fácil notar que há muita gente por aí imitando a música e o visual de vocês.  Houve algum momento específico em que você se deu conta de como tinha gente te copiando?
MIKE MUIR – Acho que isso aconteceu algumas vezes.  Pessoas que não nos conheciam, tentavam nos comparar com alguém: “Hey, por que vocês tentam se vestir de skatistas?”.  E eu respondia: “Cara, os skatistas nunca se vestiram assim”.  Meu irmão era skatista profissional (N.E.: Jim Muir) e eu fui a primeira pessoa a sair na capa da revista Thrasher sem ser skatista.  Se você olhar as edições antigas da revista, vai ver que, antes disso, todo mundo usava shorts colados e coisas do tipo.  Depois do Suicidal, é que começaram a usar roupas largas.  Mudou tudo.  E é interessante que há um ano, numa edição da Thrasher, saiu essa matéria “O que está na moda e o que está por fora” e o Suicidal estava “na moda” (risos).  E muitas das coisas que eles afirmaram estar “por fora”, são bem mais novas que o Suicidal!  A mesma coisa aconteceu 17 anos antes, com esse lance do que está ou não por dentro.  Eu não me importo em ser o cara do momento ou a novidade, mas poucas pessoas realmente conseguem ser vistas dessa forma há tanto tempo.  Muita gente pode dizer: “Ah, você só está tentando vender sua imagem”.  E eu respondo: “Quer saber?  Não diga isso.  Eu posso não gostar de tal banda, mas eles me disseram que eram glam até conhecerem o Suicidal” (risos).  Então, é interessante…nós não mudamos, mas muita gente mudou.  Obviamente ninguém se vestia como nós, mesmo porque as pessoas que usavam essas roupas não tocavam em bandas, não faziam música.  O que acontece é que muita gente se apropria do que considera 'cool', e a ironia disso é que nós mesmos nunca tentamos ser 'cool'.  Pelo contrário, nós sempre nos esforçamos para não ser 'cool'.

Falando de skate, qual é sua opinião sobre toda essa badalação em volta do documentário "Dogtown & the Z-Boys – Onde Tudo Começou" e do longa-metragem "Reis de Dogtown"?  Você acha que retraram bem aquela época e lugar?
MIKE MUIR – Veja só, eu convivi com os velhos skatistas, e meu irmão era um dos Z-Boys originais e ainda é dono da Dogtown Skates. Jay Adams, um dos meus melhores amigos, é mostrado no filme de Hollywood ("Reis de Dogtown") indo a um show com um estilo Suicidal.  Na verdade, ele era um dos 'suicidal dudes' originais.  De certa forma, eles mostraram isso no filme.  Mas, da mesma maneira, há o retrato incorreto da mãe de Jay.  Ela era uma grande pessoa e uma tremenda batalhadora, mas não é assim que ela é mostrada no filme.  Isso me chateia porque eu a conhecia e ela, inclusive, faleceu recentemente.  Eles não precisavam ter feito aquilo, mas foi tudo escrito pelo Stacy (Peralta), que está no filme e também dirigiu o documentário ("Dogtown & the Z-Boys – Onde Tudo Começou").  Ele era skatista e isso meio que....  Bem, o que eu quero dizer é que se fossem fazer um filme sobre os primeiros dias do Suicidal, eu não poderia participar, entendeu?  Como eu estava lá, teria que ser feito por outra pessoa.  E o Stacy, nesse caso, se colocou numa posição complicada.  Mesmo assim, muitas daquelas pessoas e o jeito como as coisas eram (em Venice), foram retratados corretamente.  Meu irmão e muitos outros skatistas daquela época terão (graças ao filme) uma visibilidade maior por algum tempo.  Também vai ter muita gente entrando nessa para ser 'cool', mas esses vão desaparecer em um ano.  E há muitas pessoas que normalmente não seriam expostas (ao skate) e que agora estão sendo.  É daí que sairão os Jay Adams da nova geração.  De certa forma, é o que acontece com a música.  Todas as vezes que tocamos em lugares que eram mainstream, demos uma oportunidade às pessoas de se identificarem conosco.  Mas é claro que, por outro lado, existe uma comercialização maciça, com a Nike e outras marcas.  Havendo mercado e coisas para vender, eles sempre estarão lá.  Infelizmente, esse é o mundo em que vivemos.


Interessante você citar isso, pois no livro do fotógrafo Glen E. Friedman, "Fuck You Heroes", ele confessa que o entusiasmo dele pela cena skate vem da época mais underground, em que as pessoas andavam em piscinas vazias na Califórnia.  Quando o skate virou um esporte profissional e com grandes patrocinadores, ele perdeu o interesse.  Você também acha que o espírito mudou?
MIKE MUIR – Há uma grande contradição aí, pois ele também está vendendo o livro.  Ele é o cara que diz que copyrights não interessam, mas quando alguém usa uma foto dele sem pagar, é processado.  Há uma grande contradição a respeito do Sr. Friedman.  Eu acho que isso é lamentável, porque ele tenta agir e dizer as coisas certas, saca?  E a realidade é a seguinte: ninguém jamais imaginaria que algum dia fariam um filme sobre aquela época.  Essa é a verdade.  Poderia acontecer com qualquer um que estivesse lá, como Stecyk, que na verdade era fotógrafo e escritor, e o trabalho dele era brilhante.  E essa é outra ironia, pois como a cena era muito pequena, ninguém se dava conta de quão talentoso ele era.  E a forma como ele foi retratado no filme ("Reis de Dogtown") foi terrível.  Eis um cara que pode usar o nome de Dogtown acima de todo o resto.  Eu li um artigo que Stecyk escreveu sobre Dogtown e te faz sentir uma vontade incrível de ter vivido naquela época.  E eu acho que Stecyk provavelmente tem mais a ver com tudo aquilo (que Glen. E Friedman).  Ele poderia ter trabalhado em qualquer coisa e ficado realmente rico, mas ele preferiu manter-se fiel ao lance em que ele acredita.  Mas há muita gente que adora dizer: “Eu fui a primeira pessoa a entrar na cena e a primeira a sair”. É o fator 'cool', saca?  E além do mais, já naquela época, Glen andava de Mercedes em todos aqueles lugares, portanto…

Voltando ao Suicidal.  É perceptível que em "Freedumb" vocês resgataram uma sonoridade mais crua, mais old school, porém, no álbum seguinte, "Free Your Soul and Save my Mind", já se pode detectar algumas músicas meio “funkeadas”.  Você já foi criticado por não dar ao público o que ele quer?
MIKE MUIR – Sempre!  Tem aquela revista que comentei com você antes e também a Spin, que é uma grande publicação americana, e sempre que esse pessoal resenhava nossos discos, dizia que eram horríveis.  Só que aí, quando saía um novo álbum, eles escreviam: “Que pena! Esse disco é uma droga e o anterior era tão legal!”.  Ou seja, o disco que eles diziam ser “tão legal”, era o mesmo que eles tinham taxado anteriormente de “horrível”.  Quando nosso primeiro álbum saiu, todos os punks reclamaram: “Ah, é muito metal!”.  E aí, quando gravamos o seguinte, eles disseram: “Que saco! O primeiro era clássico e agora eles viraram metal!”.  Sempre foi assim e…

…você nem se importa mais.
MIKE MUIR – Na verdade, eu nunca me importei.  Tenho um amigo, e é engraçado como às vezes a gente esquece dessas coisas, que a primeira vez que esteve na minha casa viu um quadro com vários recortes de críticas dizendo todo tipo de merda sobre nós.  E ele me perguntou: “Cara, por que você colocou isso na parede?!  Todas essas críticas falam mal de vocês!”.  E eu respondi: “Porque eu não me importo! Eu não ligo para o que as pessoas dizem” (risos).  Ele ficou meio assustado, mas, tempos depois, me falou que na época não tinha entendido aquilo, e que só depois percebeu que eu realmente não dou a mínima.  Se você não se importar, não te afeta.  São as pessoas que dão força às palavras.  Há zilhões de bandas que surgiram e desapareceram desde que começamos, de todos os estilos, mas nenhuma como o Suicidal.  Isso é mais importante para mim.  E outra coisa que percebi é que há muita gente que não entende direito a música que fazemos, então querem nos atacar por outros motivos, como a mistura racial da banda, a forma como nos vestimos e tudo o que você possa imaginar. Deixa pra lá.  Nós levamos isso para o palco.  Agora vamos para o Brasil e deixaremos as pessoas decidirem o que acham de nós.

A que você credita tantas mudanças de formação no Suicidal Tendencies?
MIKE MUIR – Isso é interessante.  Muitas vezes as pessoas não compreendem, mas há grupos que perdem apenas um integrante e já não conseguem continuar.  E muitas pessoas passaram pelo Suicidal, antes mesmo de gravarmos nosso primeiro disco.  Se não tivéssemos feito essas mudanças, talvez não houvesse sequer o primeiro disco.  E da mesma forma, se não fosse por isso, não teria havido um segundo disco.  Acho que tudo depende da situação e, para ser sincero, algumas pessoas mudam.  Não que eu tenha algo contra mudar, mas às vezes não é compatível, musical ou pessoalmente.  Às vezes acontecem coisas na vida que fazem com que as pessoas deixem de ter os mesmos objetivos. Pode ser tão difícil arranjar um músico quanto uma namorada. Vai ter sempre gente boa e ruim.  O que não dá é para viver o tempo todo discutindo com alguém.  Meus pais são casados há 40 anos e nunca brigaram.  Então eu percebi desde cedo que jamais me casaria com a primeira pessoa que conhecesse e sim, com aquela fosse minha melhor amiga.

Como você deve imaginar, os dois últimos álbuns de vocês não são tão conhecidos por aqui quanto aqueles que vocês gravaram pela Sony, especialmente "Art of Rebellion", que teve dois hits nas rádios do Brasil.  Baseado nisso, você pensa em preparar um set-list especial para essa ocasião?
MIKE MUIR – Essa é uma coisa curiosa e me leva de volta a outra pergunta que você fez.  Há três anos, uma jornalista veio da Inglaterra para um de nossos shows.  Depois de tocar, eu fui até o público, dei umas voltas e então me dirigi ao camarim para dar a entrevista.  Quando entrei, ela estava dizendo a nosso empresário: “Nossa, eu nunca vi nada assim!”.  E eu não sabia do que ela estava falando.  Até que percebi o motivo: eu estava ali de pé e vieram uns skatistas me cumprimentar.  “Cara, você são a melhor banda de skate rock que existe!”.  E depois, veio um grupo de garotos punks e eles disseram: “Vocês são a melhor banda de punk rock que existe!”.  E, finalmente, apareceu um cara de cabelo comprido: “Vocês são a melhor banda de metal que existe!” (risos).  Ou seja, se você se define de certo jeito, então é isso que você se torna.  E, nesse aspecto, cada um nos enxergava do seu jeito.  Foi isso que a jornalista disse nunca ter visto isso antes.  Ou seja. ela estava habituada a todas essas divisões (de tribos), mas nunca tinha visto as divisões caírem. E quanto a nós, jamais fomos uma banda que tenta agradar.  Antes de tocar no Brasil, vamos participar de um festival de três dias na Colômbia e eles nos disseram que seremos a atração principal do dia do metal.  Duas semanas depois desses shows, vamos fechar um evento no Olympic Auditorium, em Los Angeles, onde tocarão Germs, Dead Kennedys, Fear e todas essas bandas punks de verdade.  E o lance do Brasil será completamente diferente do resto.  Não vamos sentar para combinar o que tocaremos, pois o Suicidal é diferente de qualquer outra banda.  Estamos aqui para provar.  Claro que sabemos que quando se está numa 'major', muitas coisas são mais fáceis e isso é legal, mas na hora em que estamos em cima do palco, tocando para gente que não nos conhece, a responsabilidade é sempre nossa.  Não tem ligação com o DJ da rádio, isso ou aquilo.  Tem a ver com pessoas nos assistindo e julgando aquele momento.  Ainda gostamos da maioria das músicas que escrevemos e do que tocou nas rádios, mas, tipo, vai haver alguém (que foi ao show) que dirá: “Você precisa ouvir esses caras!”.  E para nós, esses shows também são uma grande oportunidade de tocar para pessoas que gostam da banda e que poderão nos ver ao vivo outra vez, lembrando porque gostam tanto de nós.  Elas terão a chance de levar seus irmãos e primos mais jovens ao show e, quem sabe, mostrar a eles porque acham que nossa música é melhor.  Pretendemos voltar ao Brasil uns seis meses após esse festival para fazermos um show só nosso e vocês podem contar com isso.  Eu descobri que quando você tem um sucesso nas rádios ao redor do mundo, pode atingir milhões e milhões de pessoas, e isso não tem preço.  Mas quer saber?  Eu me lembro de uns três momentos em que ouvi determinado disco pela primeira vez e nunca mais me esquecerei da sensação.  É essa a nossa onda…

Pela sua resposta, dá para antever um grande show.
MIKE MUIR – Um grande show, não: nós tentamos fazer o melhor show!  É por isso que estamos indo (para o festival).  Acho que temos algo a oferecer que os outros não têm.  Estaremos aí pela fidelidade a quem nos apoiou durante todos esses anos, e também pela oportunidade de mostrar a um público novo porque certas pessoas nos têm em alta consideração.  Como meu pai diz: toque o coração das pessoas.  É isso que queremos fazer.

Vinyl, de Martin Scorsese, é ouro puro

Ninguém tem mais autoridade e talento para recriar a Nova York perigosa e decadente da década de 1970 que Martin Scorsese. Poucos realizadores têm em seus créditos documentários musicais com o peso histórico de "No Direction Home", sobre Bob Dylan, ou a série "Blues". E ainda está para surgir quem filme melhor o universo masculino de poder, drogas, dinheiro e excessos -e o reflexo disso na estrutura familiar- do que o cineasta ítalo-americano.

Todos esses elementos que notabilizaram a preciosa filmografia de Martin Scorsese -ele próprio um fã de rock que ouvia The Clash a todo volume durante as gravações de "Touro Indomável"- estão agora a serviço de "Vinyl". A série, concebida e produzida por Mick Jagger, estreou há dois dias na HBO e é ouro puro.

O roteiro mescla espertamente personagens e situações fictícias com alguns protagonistas históricos do rock, tecendo uma história que remonta a fase dourada da indústria fonográfica e também o 'modus operandi' de executivos, agentes, empresários e radialistas. Cada detalhe tem a elegante assinatura de Scorsese. A sede da gravadora American Century, por exemplo, e mais ainda seu time de excêntricos funcionários, remete imediatamente ao ambiente escandaloso de "O Lobo de Wall Street". Mas aqui, ao invés de um yuppie cocainômano e inescrupuloso no comando dos negócios, temos o executivo Richie Finestra (Bobby Canavale), um sujeito com 20 anos de experiência na indústria do disco e cuja caracterização terminou lembrando o famoso empresário do show business Bill Graham.

"Vinyl" tem como ponto de partida uma negociação milionária articulada por Finestra e seus comparsas com a gigante alemã PolyGram. No processo, os americanos acenam aos germânicos com a possibilidade de um bilhete premiado: a contratação bombástica do Led Zeppelin.


O que se segue é uma montanha russa de acontecimentos regados a álcool e cocaína, com um Peter Grant -notório empresário do Led Zep- enlouquecido e quebrando tudo e um Robert Plant afetadíssimo. Para os fãs da banda inglesa, vale também pela ótima reconstituição dos bastidores do show no Madison Square Garden e que deu origem ao filme "The Song Remais The Same".

Richie Finestra tem ainda que contornar uma trapalhada de Donny Osmond, artista de seu elenco, e evitar o boicote de uma rede de estações de rádio. Em meio a isso, em outra subtrama, somos apresentados ao antagonismo do punk novaiorquino via The Nasty Bitz, banda imaginária liderada por Kip Stevens (interpretado por James Jagger, filho de Mick). Há ainda flashbacks sobre o cantor de blues Lester Grimes (Ato Essandoh) e que funcionam para ilustrar as armações e a truculência de empresários do ramo fonográfico.

Obcecados por história do rock vão enlouquecer pinçando as referências a bandas, empresários e situações ocorridas no período. Tem desde a guitarra quadrada de Bo Diddley ao então emergente grupo ABBA, passando por Otis Redding, Ruth Brown, Chris Kenner, England Dan & John Ford Coley, Ahmet Ertgun, David Geffen, Lester Bangs e o que parece ser o diabólico executivo Ray Romano. A tradução brasileira oculta ainda uma citação engraçada ao grande Captain Beefheart.

"Vinyl" tem festas de arromba, reuniões tensas sob nuvens de fumaça, sacanagem em jatinhos particulares, orgias e até assassinato e ocultação de cadáver. A cena final, com um show alucinante dos New York Dolls e o simbolismo da implosão do rock clássico, é desde já um dos momentos antológicos em séries de TV nos últimos anos.

Não perca por nada.


Para quem perdeu, a HBO está disponibilizando o primeiro episódio -com duas horas de duração- na íntegra

Precisamos falar sobre Glenn Danzig

Um amigo, grande fã de Danzig, daqueles que têm juízo o bastante para saber que o Misfits deve quase tudo ao ex-vocalista e que a banda sem ele tornou-se um pastiche de si própria, me confidenciou recentemente: "Glenn Danzig perdeu a voz. Faz uns dez anos que está enrolando". Mas como fã perdoa (quase) tudo, encerrou a confissão admitindo que ainda acompanha o cantor e compra todos os seus discos. "Mas nada como os três primeiros álbuns", fez questão de ressaltar.

"Danzig III: How the Gods Kill", o tal terceiro disco, foi gravado no já distante ano de 1992 e de lá pra cá, de fato, Danzig não gravou nada especial. Lançou trabalhos poucos inspirados e até arriscou-se com um disco de temas instrumentais chamado "Black Aria". Ao longo da carreira, especialmente em sua fase 'clássica', não teve medo de flertar com blues, metal e goth rock, oferecendo a todos os gêneros sua voz empostada, uma espécie de 'mash-up' de Elvis Presley e Jim Morrison.

Na fase menos popular da carreira, teve ainda um pequeno brilho: "Thirteen", canção de seu disco "Satan's Child", foi lindamente regravada por Johnny Cash como parte de sua série "American Recordings". Um luxo para poucos.

Agora, sessentão, Danzig diminuiu o ritmo. Faz poucos shows -o do Brasil, em 2011, foi cancelado- e grava o quê e quando lhe dá na telha. Um retrato disso é seu mais recente trabalho, o disco de covers "Skeletons", lançado há quatro meses.

Gosto de álbuns com regravações. É sempre divertido descobrir o que artistas escolhem reinterpretar e como se saem na tarefa. No caso de Danzig, houve certo frisson quando o cantor postou nas redes sociais uma imagem da sessão de fotos para o disco. Pela primeira vez em mais de 30 anos, surgiu maquiado com as fantasmagóricas pinturas faciais dos tempos de Misfits. Para o público que sonha há anos ver Danzig, Jerry Only e Doyle no mesmo palco, a menção ao passado pareceu um aceno à improvável reunião.



O choque de realidade, contudo, veio com o lançamento de "Skeletons". Glenn Danzig não apenas revela uma voz cansada, mas também enorme e indesculpável desleixo com a própria carreira. O disco parece gravado na cozinha de seu casa em Los Angeles e num único 'take'. Mas, estranhamente, as coisas até que começam bem: "Devil's Angels" e "Satan", músicas pinçadas de antigos filmes de exploitation -ótima sacada!-, soam um pouco como o Misfits de 1982; algo raro em sua carreira. Mas então Danzig avança em territórios perigosos e avacalha com bandas sagradas. A interpretação vocal na balada "Rough Boy", do ZZ Top, tem a afinação de um cantor de chuveiro e "N.I.B.", do Black Sabbath, perdeu completamente o mistério, dando lugar a truques modernetes de guitarra.

Glenn, por vaidade ou economia, tocou vários ou quase todos os instrumentos em "Skeletons". E percebe-se que ele não é exatamente um grande baterista. O sujeito atravessa o samba em mais de uma ocasião, quando qualquer especialista daria conta do recado com uma mão nas costas. Tommy Victor, líder do Prong, ex-guitarrista do Ministry e do próprio Danzig, participa do álbum e mais atrapalha do que ajuda. Seus efeitos e licks modernosos destoam das composições originais e não acrescentam em qualidade. Todo mundo parece fora do ar nesse projeto desastrado. (Curiosamente, Victor gravou um outro disco de covers em 2015, "Songs from the Black Hole", com o Prong, e o resultado é MUITO melhor).

E para quem quiser se aventurar com "Skeletons", ainda dá para sofrer com alguns 'nuggets' sessentistas gravados a qualquer nota, como se Glenn Danzig estivesse cantando num karaokê de Chinatown depois de esvaziar duas garrafas de sakê. "Lord of the Thighs", do Aerosmith, é uma das poucas versões que funciona, embora a original também não seja lá grande coisa.

A capa do álbum, que tentou espertamente homenagear "Pin Ups", disco de covers de David Bowie, é outro tiro n'água. Glenn Danzig, aos 60 anos, exibe o peitoral flácido próprio de sua idade e mamilos ridiculamente desalinhados e que passaram batidos pelo 'photoshopper'. É de se perguntar se o vocalista tem amigos ou se seu ego gigante o impede de ouvir opiniões mais realistas.

Com todos os seus defeitos -e Danzig foi bastante espinafrado por críticos e fãs por conta do disco-, "Skeletons" ainda resulta num embaraço menor que "Project 1950", álbum de covers assinado por uma encarnação picareta do Misfits e no qual são destroçadas canções de Paul Anka, Jerry Lee Lewis e Ritchie Valens. O que também diz muita coisa sobre Jerry Only...



Tudo errado e fora do lugar: Danzig avacalha com "Rough Boy", do ZZ Top

Keith Richards: Under the Influence (ou Porque Adoramos Keef)

Keith Richards está no interior de uma choupana com jeitão de New Orleans. A sala é decorada com uma porção de caveirinhas. Na vitrola, por trás de uma névoa azulada de cigarros, rola um disco de blues. Acredite: os 80 minutos seguintes de "Keith Richards: Under the Influence" vão passar voando.

O documentário dirigido pelo especialista Morgan Neville é um presente para todos os fãs de música, em especial aqueles que nutrem paixão por instrumentos, ritmos de raiz e estúdios de gravação. O filme, produzido pelo Netflix e disponível para os assinantes no Brasil, não é uma biografia de Keef ou tampouco uma exaltação de sua 'persona' - aquele rockeiro excêntrico que fuma um baseado e chacoalha uma garrafa de Jack Daniel's no meio da rua, dizendo palavrões porque a 'liquor store' mais próxima já está fechada. Nada disso: "Under the Influence" é uma reverência ao músico Keith Richards. Um cara que pode discorrer por horas a fio sobre um tipo específico de afinação ou explicar, de seu jeito singular, como determinado arranjo remete ao blues primitivo de tal artista.

Keith Richards é um grande personagem do rock'n'roll, mas um tipo que só está realmente em casa e à vontade quando tem um instrumento à mão e, vá lá, um cigarrinho metido entre os lábios. Neste filme você verá Richards tocando flamenco, tocando piano e cantando blues, mandando ver no contrabaixo e desfilando seu estilo através de uma cabulosíssima coleção de violões e guitarras, com peças tão antigas quanto um item de 1928. O stone, por trás do visual 'cool', com cabelos desgrenhados, óculos escuros, bandana e blazer de couro de cobra, é músico até a medula.


Se você já teve o prazer de ler a belíssima autobiografia "Vida" (escrevi sobre o livro aqui), vai se deliciar com algumas das mesmas histórias, mas agora contadas oralmente pelo autor e de maneira totalmente informal. Richards começa explicando, por ocasião do lançamento de seu disco solo, "Crosseyed Heart", como a música americana tradicional lhe enfeitiçou na já distante Inglaterra do pós-guerra. Cita as audições proporcionadas por sua mãe, uma grande fã de música que caçava as poucas frequências de rádio disponíveis na época. E também os chiados das estações piratas inglesas, por meio das quais descobriu o country norte-americano.

A longa conversa acontece em estúdios, às vezes ao lado do baterista e produtor Steve Jordan, e continua no interior de automóveis de passagem por cidades caras ao guitarrista: Nova York, Chicago e Nashville. Keith é um malaco com estofo intelectual. Sua prosa mescla grandes sacadas sobre a vida com comentários absolutamente rigorosos sobre o estado das coisas em determinado período histórico. Por trás dos vícios e dos excessos que ele tanto cultivou, existia uma mente afiada captando tudo ao seu redor. Compreendeu o sul segregado da América nos anos 60, as extravagâncias e o lado barra-pesada dos cantores country e a efervescência cultural da Jamaica dos início dos 70's, onde morou.

Algumas passagens, sozinhas, já valeriam o filme. É sensacional ver Keith Richards e Buddy Guy sorvendo um whisky de milho enquanto disputam uma partida de sinuca e relembram como os Stones, na década de 60, ajudaram a ressuscitar os esquecidos cantores de blues. Ou então as imagens de arquivo do esporro clássico que Richards levou de Chuck Berry durante os ensaios para o show que virou o filme "Hail! Hail! Rock'n'Roll". E ainda uma breve visita à casa onde viveu o monstro do blues Muddy Waters e na qual Keef conta ter saído carregado de uma festa de arromba para terminar a noite na casa de outro mito, mister Howlin' Wolf.

E para os Stones maníacos, recomendo, enquanto não chegam os shows no Brasil, uma espiada nos trechos em que Richards explica como o grupo compôs e arranjou os clássicos "Street Fighting Man" e "Sympathy for the Devil" - ambos devidamente documentados em película, sendo o último com imagens extraídas do cultuado filme "One Plus One", do cineasta Jean-Luc Godard.

Longa vida, Keith Richards. Que viva mais cem anos.

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Trailer de "Keith Richards: Under the Influence". Bola dentro do Netflix


Um ótimo pretexto para compartilhar "Struggle", sensacional canção do disco "Talk is Cheap" ;)

Patty Schemel, do Hole: a vida é um buraco

O canal BIS vem exibindo em sua grade de programação o documentário “Hit So Hard”, de P. David Ebersole. Se ainda não viu, recomendo. Trata-se de um filme sobre Patty Schemel, ex-baterista do Hole, mas que revela-se bem mais do que isso. É um retrato sombrio do rock alternativo da década de 90, seus grandes personagens e as engrenagens da indústria que rodavam por trás deles.

O documentário lança mão de um acervo de vídeos amadores, registrados pela protagonista durante sua permanência no grupo, e os intercala com entrevistas dos principais envolvidos. O painel, visto como um todo, explica algo da tendência autodestrutiva da época, a busca desenfreada pela fama e a combinação explosiva de dinheiro e drogas.

Patty Schemel começou a carreira em pequenas bandas punks. Ainda na adolescência, se viciou em álcool e numa porção de drogas. Chamou a atenção de Kurt Cobain quando tocava com Larry Schemel, seu irmão, em um grupo chamado Sybil. Perdeu a vaga de baterista do Nirvana para Dave Grohl, mas foi indicada por Cobain para assumir as baquetas do Hole.

Para compor o material que se tornaria “Live Through This”, o mais bem sucedido álbum da banda, Schemel foi morar com Kurt e Courtney em uma casa no meio do mato, no estado de Washington. As imagens captadas pela baterista com uma handycam trêmula intensificam a ideia de que o ninho dos Love/Cobain era uma bagunça completa. A casa parece frequentada por um monte de gente, Kurt faz macaquices sem sentido e Courtney ostenta o ar de doidona com o qual ficaria para sempre associada. No meio disso tudo, uma babá toma conta da pequena Frances Bean Cobain.

A convivência termina de maneira trágica com o suicídio de Kurt. Patty Schemel, Roddy Bottum -tecladista do Faith No More- e mais uns poucos voltam para a local após saberem da tragédia e terminam sitiados por um cerco de paparazzi. Temos rockeiros alternativos e junkies desorientados ocupando por dias o noticiário mundial. Courtney Love torna-se, da noite para o dia, a viúva mais famosa do mundo.

Dois meses mais tarde, ainda curando as feridas, Courtney recebe a notícia de que sua baixista, Kristen Pfaff, também com simbólicos 27 anos, morrera vítima de uma overdose fatal de heroína. A intensidade do rock’n’roll dos anos 90 reproduz as glórias e as tragédias dos 70. O comentário da baixista substituta, a jovem e bela canadense Melissa Auf der Maur, resume o espírito da época: “Entrei para a banda sabendo que lidaria com pessoas que brincavam com a morte”.


“Hit So Hard” ganha contornos dramáticos quando dirige seu olhar para as gravações do álbum “Celebrity Skin”. Patty Schemel, que passara boa parte da juventude entrando e saindo de clínicas de reabilitação, chega ao estúdio sóbria. Não ingeria drogas havia dois anos e estava pronta para o rock. Mas não na opinião do produtor Michael Beinhorn. As descrições das excruciantes sessões de gravação são de chorar, com Beinhorn sabotando Schemel através de jogos psicológicos, sempre na tentativa de vencê-la pelo cansaço. Beirando o escárnio, ordenava que a baterista repetisse takes atrás de takes, enquanto limitava-se a pressionar o botão talk back da sala de gravação, reduzindo o volume para 1/3 do original. Ela suava para entregar sua melhor performance e ele, entediado, folheava revistas. “Beinhorn tinha a reputação de destruir bandas e trocar os bateristas durante a gravação”, relembra Courtney Love. Em duas semanas, Schemel está arrebentada emocionalmente e o produtor chama seu baterista de estimação, Deen Castronovo, para salvar o dia. Seleciona o pior take de Patty e o apresenta para Courtney, lado ao lado com o registro preciso do músico de aluguel. A líder da banda, louca pelo sucesso pop, aceita a troca. Schemel abandona o barco, furiosa. “Eu era integrante do grupo, tinha ajudado a compor aquele repertório e sabia como tocá-lo. Estava sóbria. Não entendia a razão para ser substituída”.

Um dos técnicos do estúdio, em depoimento corajoso, revela ter ouvido que Beinhorn combinara de antemão com Castronovo que este tocaria no álbum. O desempenho de Patty Schemel tornara-se então um simples pretexto para o tipo de jogada sórdida do show business com o qual os punks incautos do Hole não estavam acostumados. A substituição da baterista, como tantas outras armações da história do rock, deveria ter ocorrido em segredo, com a conivência de todos os envolvidos. Ela continuaria na banda, tocaria na turnê e ganharia sua parte da grana. Coisa banal no modus operandi do KISS, por exemplo. Gene Simmons revelou que cansou de usar músicos de estúdio para gravar seus discos e que sequer lembra o nome deles. Mas o Hole tinha raízes no punk e no rock underground dos anos 80. Schemel crescera ouvindo Dead Kennedys e Melvins. Não ia funcionar.

 “É muito difícil quando seu talento é colocado em dúvida” – resumiu Roddy Bottum em depoimento preciso. “E para que outro lugar ela fugiria atrás de conforto numa hora dessas? Para as drogas, é claro”. E o que se segue é uma espiral de decadência que merece lugar nas memórias mais toscas e barra-pesada do rock, incluindo uso de crack, vida nas ruas, prisão, miséria e prostituição. Schemel, que sempre tivera problemas com o vício, terminou sem dinheiro e internada pela décima-primeira vez numa clínica de reabilitação. Várias bateristas de famosas bandas femininas como Go-Go’s, Luscious Jackson e Bangles, além da pioneira Fanny, dão seus depoimentos em apoio a Patty Schemel. E relembram, elas próprias, suas dificuldades em lidar com as desconfianças e os egos de suas vocalistas.

O filme trata “Celebrity Skin” como um esforço mal sucedido do Hole. Eric Erlandson, guitarrista e co-fundador, afirma que faltou alma ao disco, e credita esse defeito à ausência de Schemel. Mas tal apreciação do álbum é tendenciosa. “Celebrity Skin” é a versão mais polida e bem acabada das ideias que a banda antecipara em “Pretty on the Inside” e “Live Through This”. A despeito de suas medonhas histórias de bastidores, é possivelmente um dos 10 melhores discos de rock da década de 90 - o que não é pouca coisa. “Celebrity Skin” é também uma celebração de Courtney Love a Los Angeles e Hollywood, sua fauna excêntrica de astros e estrelas e o gosto do sucesso que ela enlouquecidamente perseguiu. O disco teve vendas na América pouca coisa inferiores ao badalado “Live Through This”: 1,4 milhão do primeiro contra 1,2 do segundo. Na corrida de longa distância, porém, “Celebrity Skin” é o álbum mais lembrado do Hole. A faixa título tem, até a publicação dessa coluna, mais de 12 milhões de execuções no serviço de streaming Spotify. É, de longe, a faixa mais ouvida da carreira da banda.

O Hole se desmantelou com a proximidade do fim do milênio. O rock alternativo que tomara o mundo de assalto com Kurt e Courtney não teria vez nos anos 00, e o que restava de integridade virou cinismo. O filme até oculta, mas Patty Schemel, após juntar os cacos, aceitou o convite para tocar em “America’s Sweetheart”, o terrível disco solo de Courtney Love, do qual salvam-se apenas os ótimos singles "Mono" e “Hold On To Me”.

Courtney, por sua vez, aprontou ainda um último e farsesco capítulo na trajetória do Hole. Em 2010, levando a cara de pau a novos patamares, convidou Michael Beinhorn, a quem chamara antes de nazista, para produzir o álbum "Nobody's Daughter". Para piorar, articulou a volta da banda sem a anuência de Eric Erlandson, com quem tinha um contrato por escrito resguardando o nome do grupo. O disco foi um fracasso comercial e Erlandson, à época, prometeu resolver a questão nos tribunais.


"Hit So Hard", o filme: a pancada foi grande



Hole, no auge da forma, entrega uma das melhores canções dos anos 90