Rebellion Festival 20 anos: festival é isso
Após o incendiário show de Flag e TSOL em Amsterdã, Caixa Preta esteve por três dias em Londres à espera do Rebellion Festival, que acontece na cidade litorânea de Blackpool.
No cardápio londrino, rápida visita ao lendário 100 Club, uma espiada na Les Paul de Mick Jones -emoldurada numa loja em Oxford Street- e o tradicional café da manhã no Troubador, local do primeiro show de Bob Dylan na Inglaterra. Mas também alguns 'pints' de Guinness no pub The World's End, em Camden Town, que toca de Sepultura a Satyricon, e ainda uma esticada até Canary Wharf, onde funciona o The Grapes, taberna de propriedade do ator Ian McKellen e estabelecida no ano de 1583! Na última noite, jantar vegetariano na casa de Simon, guitarrista e vocalista da ótima banda punk Left For Dead.
A viagem de trem até Blackpool acontece num vagão repleto de punks e a chegada ao balneário turístico revela uma cidade tomada por gente com moicanos coloridos, jaquetas de couro e coturnos. E também muitos skinheads tradicionais de camisas Fred Perry, suspensórios e botas Doc Martens. Não falo de algumas dezenas ou centenas deles, mas de milhares.
A cidade recebe muito bem a fauna punk que lota seus bares e hotéis. Os rebeldes ingleses do fim dos anos 70 são agora respeitáveis senhores de 50 anos, com divisas suficientes para movimentar a economia de um destino turístico de verão.
O Rebellion Festival acontece anualmente no luxuoso complexo de entretenimento The Winter Gardens, construído no ano de 1896, e que possui 12 ambientes, incluindo o teatro The Opera House, com 3 mil lugares, e o suntuoso Empress Ballroom, um dos maiores salões de baile do mundo, com quase 1.200 metros quadrados e onde até os Beatles já se apresentaram. Ao longo de 120 anos de existência, o Winter Gardens trocou de mãos algumas vezes e chegou a ser comprado pela EMI no final da década de 1960.
O Rebellion Festival já faz parte do calendário de eventos de Blackpool e, em 2016, comemorou sua 20ª edição e os 40 anos da explosão punk. O banquete foi farto: cerca de 200 bandas e ainda palestras, entrevistas e shows acústicos. E pela primeira vez, o Rebellion teve shows ao ar livre numa arena em Tower Street. Resultado: toda a carga de 10 mil ingressos vendida antecipadamente. Um sucesso.
Com o programa do festival embaixo do braço e a pulseira de identificação que permite sair e entrar de todos os ambientes, montei minha agenda. Ainda no hotel, ouço ecos da música de CJ Ramone, que vem desde o palco aberto, e, logo às seis da tarde, depois de uma espiada nos shows de Drongos for Europe e da banda de ska Buster Shuffle, surge o primeiro impasse: rever o poderoso Flag ou assistir aos dementes americanos do Dwarves? É o tipo de dúvida que frita os miolos do público durante os quatro dias de festival.
O que há em comum em qualquer show é a quase completa ausência de smartphones filmando e fotografando as apresentações. O estafe do festival é grande e o controle de entrada e saída, sempre cuidadoso. Mas, assim como no Melkweg, ninguém passa pela revista de seguranças. Também não há patrocinadores e logotipos de empresas estampados em balões. E há uma feira com cerca de 20 estandes vendendo LPs, CDs, compactos, camisetas, livros, DVDs e materiais diversos de todas as bandas imagináveis. É para falir qualquer um.
No Opera House, aconteceram também entrevistas com figuras especialíssimas do naipe de Captain Sensible, Handsome Dick Manitoba, dos Dictators, e Dave Dictor, do MDC. Mas um certo Jello Biafra roubou a cena com um bate papo acontecido à meia-noite diante de um teatro lotado, e conduzido por John Robb, vocalista do Goldblade e baixista dos Membranes. Sabe aqueles discos de 'spoken word' que Biafra lançou aos montes nos anos 90? É aquilo, só que mais divertido e informal.
A seguir, um pouco de tudo que vimos no Rebellion 2016.
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QUINTA, 04 DE AGOSTO
FLAG - Foto: Dod Morrison |
BUSTER SHUFFLE
Ska modesto com um vocalista hiperativo surrando um teclado e uma cantora negra metida numa camisa Fred Perry fazendo os backing vocals. Não deixaram saudades.
DRONGOS FOR EUROPE
Punk rock bem europeu, com público a favor e tocando no maior palco do festival. Tem tudo certinho e no lugar, mas falta alguma coisa.
FLAG
Depois do nocaute aos sentidos no Melkweg, eles atacam com o mesmo set-list, mas à luz do dia e sem o clima de baderna de Amsterdã. A experiência não é igualmente transcendental, mas o show teria sido bom mesmo se desse tudo errado. Flag é absolutamente sensacional.
TSOL
Jack Grisham feliz da vida outra vez, e a guitarra de Ron Emory com seus timbres belíssimos. A formação clássica do TSOL funciona às mil maravilhas no palco e não deveria se separar nunca mais.
DESCENDENTS
Começam com "Everything Sucks Today", minha favorita, e seguem com uma canção atrás da outra, a mil por hora, para um Empress Ballroom lotado até a última molécula de espaço. A qualidade de som, surpreendentemente, não faz jus às tripas que a banda entrega no palco. Exausto pela viagem e pelos shows anteriores, cochilo de pé, no meio da multidão, e depois reconheço que deveria ter optado por ver os Dickies, ao ar livre, banda que gosto mais.
THE VARUKERS
Os vi num fim de noite, em um palco menor, e com o som alto a perfurar os tímpanos após uma maratona de shows. Rat é figurinha carimbada do hardcore britânico e os Varukers têm seu lugar cativo na história.
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SEXTA, 05 DE AGOSTO
BUZZCOCKS - Foto: Getty Images |
REAGAN YOUTH
Banda reformada e com um vocalista com pinta de ex-integrante do Mucky Pup. Fazem tudo certo, mas não empolgam. O guitarrista, chefão do grupo, toca usando bandana e faz mil solos de guitarra. Soa melhor nos discos gravados há 30 anos.
SUBHUMANS
Topei com o lendário vocalista Dick Lucas nos corredores do hotel em que estava hospedado. Ele sempre muito louco e acompanhado de gente ainda mais excêntrica. No palco, que é onde vale, o Subhumans faz belíssimo show. São os mensageiros do anarcho-punk e oferecem flertes com reggae e ska. Lucas ainda se apresentou no festival com o Citizen Fish.
DISCHARGE
Os inventores do 'D-Beat' voltaram a fazer o que sabem melhor. Com os irmãos Tezz e Bones nas guitarras, o viajandão "Rainy" Wainwright com seu baixo Flying-V e um novo vocalista, Jeff Janiak, eles soam como o Discharge que todo mundo adora. Um show preciso, matemático, e com aquela sonoridade pós-apocalíptica que influenciou dois milhões e meio de bandas.
ANTI-NOWHERE LEAGUE
Animal é um malandrão inglês que no palco parece ficar com três metros de altura. É o frontman punk por excelência. A seu lado, um guitarrista que se parece com a versão viking do Jared Leto. Tiveram a seu dispor um excelente som ao vivo e a multidão cantando tudo: "(We Are) The League", "Streets of London" e "For You". Fabuloso!
BUZZCOCKS
É como ver a Seleção Brasileira da Copa de 70. Um desfile de elegância. Pete Shelley velhinho, de barba branca e encolhido pela idade, e Steve Diggle com energia juvenil, dando um show à parte. Repertório poderoso e público emocionado. É Buzzcocks, afinal.
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SÁBADO, 06 DE AGOSTO
THE DAMNED - Foto: Vicky Pea |
CHRON GEN
Ficaram parados por muitos e muitos anos. Voltaram à ativa e gravaram novo disco, apenas o segundo da carreira e que sucede o cultuado "Chronic Generation", de 1982. O trio mistura punk com hard rock à Billy Idol. Não é para todos, mas é honesto.
JFA
Dave Peligro, baterista dos Dead Kennedys, cansou de usar uma camiseta dessa banda que pertence a uma geração clássica do hardcore americano. Ao vivo, fazem uma maçaroca sonora com teclados e que abre espaço para excentricidades, como o tema do desenho animado "Snoopy". Passo.
HARD SKIN
A banda oi! mais carismática do mundo toca no pequeno palco Pavillion, do Winter Gardens, e faz a festa de um público que canta junto cada refrão. O baixista e vocalista Fat Bob é um fanfarrão que emenda uma série de piadas a cada intervalo. "We're just brilliant!", diz ele em algum momento. E quem somos nós para discordar?
GBH
Em ótima forma, precisos, e com o vocalista Collin aparentando uns 20 anos a menos que a idade. Tocaram clássicos como "City Baby Attacked By Rats", "Alcohol", "Gimme Fire" e outras mais. Por duas vezes convidam garotas de outras bandas a assumirem os instrumentos.
THE DAMNED
O Cock Sparrer tocava para 5 mil pessoas no Empress Ballroom, num dos shows mais aguardados do festival, mas optei por ver o Damned. E agradeço por isso. Uma equipe de dez roadies monta o palco e a banda surge com um som cristalino. Dave Vanian, vampiresco, de casaco de couro, luvas e óculos escuros, e Captain Sensible com sua inseparável camisa rubro-negra listrada e a indefectível boina vermelha. Fazem um show gigante e que culmina com um final apoteótico: "Neat Neat Neat", "New Rose" e "Smash it Up". Épico!
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DOMINGO, 07 DE AGOSTO
Jello Biafra - Foto por: Dod Morrison |
COCK SPARRER
Mais que uma banda, o Cock Sparrer é uma espécie de religião para punks e skinheads ingleses. Na ativa desde 1972, o grupo vive uma nova onda de popularidade desde a virada do milênio e suas apresentações ao vivo têm o aspecto de missas campais. O show extra, batizado de "hangover set", acontece na arena da Tower St e em lugar da banda Street Dogs, que cancelou sua ida ao festival. Mais de metade do clássico álbum "Shock Troops" no setlist e uma multidão de punhos em riste, cantando como se não houvesse amanhã. No fundo do palco, Jello Biafra assiste ao show sorridente e, à certa altura, é cumprimentado calorosamente pelo vocalista Colin McFaull.
DAG NASTY
Está aí um grupo que nunca imaginei que veria ao vivo. Há anos em estado de hibernação, a banda post-hardcore de Washington DC voltou surpreendentemente à ativa em 2015. E com sua formação original, que conta, entre outros, com o vocalista afro-americano Shawn Brown e o lendário guitarrista Brian Baker, de Minor Threat e Bad Religion. Show acima das expectativas e com momentos instrumentais intrincados que remetem ao grande Fugazi.
JELLO BIAFRA & TGSOM
Aproveitando a garoa e o frio que estragavam o verão de Blackpool no último dia de festival e que fazia o público se recolher nos intervalos dos shows, me posicionei na cara do palco para ver Jello Biafra & The Guantanamo School of Medicine. Artista de primeira grandeza, Jello comandou a banda numa apresentação arrebatadora. Repertório que mesclou canções atuais, clássicos dos Dead Kennedys e a bomba atômica "Forkboy", do Lard, que provocou abalos sísmicos no litoral inglês. Entremeado por discursos políticos corrosivos, o único 'stagedive' do festival e uma versão ácida de "Nazi Punks Fuck Off", que virou "Nazi Trumps Fuck Off".
STIFF LITTLE FINGERS
Coube à clássica banda de Ulster fechar o festival sob a garoa e o frio cortante do palco da Tower Street. Abriram o show com nada menos que "Wasted Life", canção-manifesto sobre o período mais turbulento da Irlanda do Norte e desfilaram seu poderoso repertório até o grand finale, com os hinos punks "Suspect Device" e a emocionante "Alternative Ulster".