Um bom tempo se passou desde o anúncio de nosso programa de rádio, mas agora, para o bem de seus tímpanos, Audio Attack está no ar!
O programa está sendo transmitido todas as quintas, às 23h, pela Antena Zero, vencedora do prêmio Dynamite 2016 na categoria "Melhor Rádio Online".
Audio Attack é apresentado pelo autor deste Caixa Preta, e em companhia de Jef Punk, baixista das bandas Flicts e Agrotóxico e fundador do mais ativo selo punk brasileiro: Red Star Recordings.
E o melhor: se você perder o programa da semana, pode conferir depois os episódios na íntegra em nossa MixCloud (mixcloud.com/audioattackradioantenazero). Segue abaixo o programa de estreia e estreou em 06/07/17 na Antena Zero (www.antenazero.com).
Para tirar o blog da hibernação em 2017, republicamos no Caixa Preta a resenha do show do Korn, realizado no mês passado em São Paulo, e que cobrimos com exclusividade para o portal Rock On Board. Em breve tem novas colunas por aqui e, finalmente!, o anúncio oficial da estreia de AUDIO ATTACK, nosso programa de rádio. Fiquem de olho!
KORN
19/04/2017
Espaço das Américas
São Paulo – SP
Parece que foi outro dia, mas o Korn, em 2017, já é banda veterana. São os últimos bastiões do nu metal, um subgênero que viveu dias de glória no fim dos anos 1990, gerando assombrosas vendagens de discos. O tempo foi cruel com o estilo e seus outros famosos representantes foram abandonados à irrelevância.
Já o Korn, com um disco novo embaixo do braço, desembarcou no Brasil com farto espaço nas editorias de entretenimento. E a razão não era “The Serenity of Suffering”, seu décimo-segundo álbum em 24 anos de carreira, mas um fato bastante inusitado: a presença de um moleque de 12 anos integrando sua tão conhecida e sólida formação. Aumentou o frisson o fato de o menino, Tye, ser filho de Rob Trujillo, baixista do Metallica e ex-Ozzy Osbourne e Suicidal Tendencies. A salada estava posta.
Crianças não combinam com bandas de rock. Ponto. E ainda pior quando a banda em questão segue a vertente mais pesada, cantando sobre temas sombrios que muitas vezes envolvem maldades perpetradas contra crianças – não se trata de apologia, pelo contrário, mas esse fato sozinho já aumenta a estranheza.
Os fãs não deixaram de prestigiar o grupo por conta da ausência temporária de Reginald Arvizu. Três mil deles, ou mais, ocuparam a maior parte desse lugar estranho chamado Espaço das Américas, com seu salão amplo e que parece perfeito para festas de formatura.
Muitos aficionados pela banda seguem a moda ditada por eles, de tranças e dreadlocks nos cabelos, além dos indefectíveis agasalhos esportivos sempre bem largos. Não é exatamente o público de outros shows de rock pesado e surpreende que o nu metal, à essa altura, ainda tenha seus próprios e fieis adeptos.
A luz azulada e o som similar ao de uma sirene anunciaram o Korn. E a massa bramiu entusiasmada. Jonathan Davis, de saia estampada, seus comparsas Brian Shaffer e James Welch, de dreadlocks emaranhados, o talentosíssimo Ray Luzier nas baquetas e, à sua direita, sobre uma plataforma que atenuava a baixa estatura, o convidado Tye Trujillo. Todos os olhos nele e o menino, compenetrado, seguia à risca sua função, enquanto a banda executava “Right Now” e “Here to Stay”. Excursionando com o Korn, o tecladista convidado Davey Oberlin colaborava para deixar a experiência mais climática.
O repertório da noite teve canções pinçadas de pelo menos dez discos, sem grande favorecimento a uma fase sobre outra. A irresistível “Word Up”, que em estúdio exibe uma faceta mais pop do Korn, foi interpretada ao vivo de forma fria e desleixada, sequer tocada até o final. Sem dúvida, o ponto baixo da apresentação.
Tye Trujillo, por sua vez, pulverizava as suspeitas sobre a pouca idade e, surpreendentemente, misturava-se com naturalidade aos adultos. Com postura, boa técnica e metido numa camiseta da banda sueca Meshuggah, subia e descia da plataforma, às vezes entusiasmado em poder chacoalhar a cabeleira ao lado do guitarrista Brian “Head” Welch.
A iluminação deixava o palco quase sempre muito claro, e as guitarras, saturadas, com a famosa afinação baixa do nu metal, criavam um clima estranho; quase estéril. Tudo é parte da receita que fez a música do Korn resistir bravamente ao teste do tempo. São diversas faixas baseadas em riffs repetitivos e que criam pequenos mantras, estendidos até explodirem em algum refrão que manda tudo às favas. “Blind”, parte do repertório do show, é ótimo exemplo dessa fórmula que influenciou muita gente, de Sepultura a Linkin Park.
A apresentação teve ainda solo de bateria, Jonathan Davis causando com sua gaita de foles, um dueto de baixo e bateria para prestigiar o baixista mirim, muito aplaudido, e a poderosíssima “Make Me Bad”. “A.D.I.D.A.S”, dessa vez, ficou de fora.
O bis, previsível, trouxe os dois maiores êxitos comerciais do Korn. “Falling Away From Me”, com sua introdução misteriosa e atmosférica, é das melhores coisas que o grupo já produziu e gerou uma tremenda ovação assim que a banda retornou ao palco.
“Freak on a Leash”, por fim, fez todo mundo voltar a 1998, momento em que o Korn foi dos grupos mais populares do planeta, liderando a parada da Billboard e indicado a nove prêmios no Video Music Awards, da MTV. Funciona bem ainda hoje e também como uma pequena cápsula do tempo, que ajuda a explicar sobre os estertores da última boa década da música pop.
Trechos do show do Korn no Espaço das Américas
*Foto de abertura: Francisco Cepeda.
Conheci o Monster Magnet no início dos anos 90, quando o grupo despontou através de alguma fresta da invasão alternativa que dominou as rádios, a MTV e enlouqueceu as grandes gravadoras que andavam à caça de um novo Nirvana ou Pearl Jam. O grupo de New Jersey, híbrido de stoner e space rock, era estranho demais para triscar no sucesso das bandas de Seattle. Surgiu com o disco "Spine of God", repleto de guitarras e bateria soterradas de flanger, e letras que misturavam paganismo com cogumelos e discos voadores. Do álbum de estreia, brilharam a pedrada "Medicine" e a viajandona "Nod Scene", na qual o líder Dave Wyndorf canta com a inflexão vocal de Frank Zappa.
Dali em diante, o Magnet só progrediu. Seus discos seguintes vieram mais bem produzidos e com canções que flertavam com a crueza dos Stooges, os mantras do Hawkwind e o peso do Black Sabbath. Mas tudo com uma assinatura muito particular, como se todas essas belíssimas referências tivessem sido reescritas com a cabeça dos anos 90 e depois dos 2000.
Ed Mundell, grande guitarrista, foi o mais longevo colaborador de Dave Wyndorf, o xamã que fundou e que governa há mais de duas décadas a entidade Monster Magnet. Gravou álbuns fundamentais, como "Powertrip", ganhador do disco de ouro na América, "God Says No" e o festeiro e extravagante "Monolithic Baby".
Entrevistei Mundell por email, em 2005, quando o grupo se preparava para gravar o que viria a ser o sensacional "4-Way Diablo". A entrevista foi publicada junto com uma reportagem especial na revista Rock Press.
Caixa Preta – Você pode antecipar alguma coisa sobre o novo álbum? Como estão soando as canções?
Ed Mundell – O novo material é uma espécie de junção das faixas deixadas de fora do último disco e do “clima” em que estamos agora, tendo Bob Pantella como o baterista da banda. Vocês precisam saber que quando estávamos compondo para o último álbum, tínhamos entre 50 e 60 canções para trabalhar, então, de certa forma, estávamos planejando 3 discos com antecedência. Assim sendo, há muita música para ser testada agora somada ao que ainda estamos criando. E ter Bob na banda faz com que tudo atinja níveis insanos algumas vezes! E de um jeito muito positivo. Acho que a direção natural que as coisas estão tomando vai nos levar para uma onda mais psicodélica, algo entre (os álbuns) Spine of God e Dopes to Infinity…o que está bom pra mim!
CP – Parece que há uma certa atmosfera permeando cada disco do Monster Magnet. Como isso é obtido? Você e Dave Wyndorf desenvolvem algum conceito juntos antes de entrarem no estúdio ou é um processo natural de composição?
EM – Bem, parece que as coisas acontecem naturalmente para nós. Às vezes um disco está finalizado e precisa apenas de um “algo mais”, então temos que voltar e criar isso. Estou trabalhando com Dave há muito tempo, então basicamente já sabemos o que precisa ser feito para criar um álbum do Magnet que nos satisfaça, assim como a qualquer um que se importe em ouví-lo… Normalmente, nós entramos no estúdio com 15 a 20 músicas prontas e quando percebemos qual é o clima predominante, selecionamos o repertório. Todos nós temos coleções gigantescas de discos e AMAMOS música, então sabemos o que NÓS gostaríamos de ouvir num álbum, portanto não trata-se de física quântica!
CP - Monolithic Baby! é provavelmente o disco mais direto de vocês e possui um número expressivo de hits em potencial. Você acha que esse álbum teria dominado as paradas com uma promoção maior por parte da gravadora? Aliás, como você vê a indústria fonográfica hoje em dia?
EM – Sabe, tudo está tão fodido na América em termos musicais. Nós apenas fazemos o nosso lance e espero que possamos continuar fazendo isso pra sempre. Nós jamais deveríamos ter sido uma banda de hit singles. Nós somos aqueles que escapamos por entre as rachaduras da indústria musical, mas acho que somos bons músicos e com um forte senso de composição. Então, se isso ainda vale para alguma coisa…
CP – Como você se envolveu com música? Existe algum artista ou álbum em particular que te despertou o desejo de fazer música?
EM – Tudo vem de Jimi Hendrix. E tenho dito!
CP – Se você fosse tivesse que citar o momento mais memorável de sua carreira no Monster Magnet, qual seria? Vale tudo: discos, shows, canções, etc.
EM – Cara, essa é difícil! Nós excursionamos com todo mundo e eu adorei as turnês com o Marilyn Manson e com o Aerosmith. Tem as garotas, as drogas… Eu poderia me estender por mais um bom tempo nessa resposta. Digamos então que se eu morresse amanhã, poderia afirmar que não tenho arrependimentos. Tudo acontece por uma razão e nessa vida eu já ri e me diverti tanto que quase chega a ser ilegal! Ah, e nós tocamos no mês passado no Azkena Festival em Vittoria, Espanha, e acho que consegui tocar umas notas muito bacanas por lá. Me fizeram sorrir.
CP – Existe alguma possibilidade de vermos o Monster Magnet no Brasil algum dia?
EM – Daqui a 6 dias vamos para Los Angeles para começar a gravar o novo disco e aqueles que mandam estão planejando uma turnê na Europa em março e abril (de 2006), além de outros festivais aqui e ali. Então, vamos ver… Se rolar, vá nos assistir e tomar uma cerveja com a gente! É bom você aparecer!
"Monolithic" – Os oceanos deveriam ter se aberto em 2004 com o poder dessa canção
Black Sabbath são meus Beatles. Sempre estiveram lá, como uma espécie de instituição.
Primeira lembrança talvez seja o álbum "Heaven and Hell" -justamente o primeiro sem Ozzy, vejam só!- que conheci uns três anos após o lançamento. As memórias se misturam com a carreira solo de Ozzy Osbourne, seus clipes no programa Som Pop, o show no primeiro Rock in Rio, que vi pela TV, e o disco duplo ao vivo "Speak of the Devil", só com repertório do Sabbath.
Em algum momento da mesma época um primo mais velho me emprestou duas preciosidades: as versões nacionais de "Paranoid" e "Master of Reality". Ambas com capas muito bem impressas e o icônico rótulo da Vertigo no centro do vinil. Detalhe curioso: a edição brasileira de "Master of Reality", de 1971, tem o nome da banda escrito com uma letra em cada cor; bem diferente do roxo da versão original.
Em 1990 ou 91, para inaugurar meu primeiro CD player, comprei o primeiríssimo álbum de carreira do Sab. A ideia era colecionar a obra da banda em formato compact disc e, preferencialmente, na ordem cronológica. Demorou, mas consegui. E, de quebra, comprei também os dois discos solo do baterista Bill Ward, bootlegs e picture discs.
O Sabbath passou pelo Brasil pela primeira vez em 1992, com a digna formação do álbum "Mob Rules", e lá estava eu para vê-los ao vivo. Tocaram boa parte de seus clássicos, privilegiando os discos que gravaram com Ronnie James Dio. Mas como tornou-se praxe na carreira do grupo, esse line-up logo se esfarelou. Sete anos mais tarde, juntaram-se a Ozzy e Ward para uma reunião que resultou num disco ao vivo e que, por algum motivo chato, também foi interrompida prematuramente. E anos depois, de novo com Dio e Appice sob o nome Heaven & Hell. Pouco senso de ocasião e muitas idas e vindas.
Levou três décadas, mas vi, enfim, na última sexta-feira, meus Beatles ao vivo. Sem Ward, mas com Ozzy, e na esteira do grande momento registrado no álbum "13" - o primeiro de inéditas com Oz em 35 anos. A aura de grandiosidade histórica do grupo parece capaz de ofuscar quase todos os artistas em atividade. E você percebe isso quando vê gente de todas as idades e lugares formarem uma multidão ávida para louvar e desfrutar canções com mais de 40 anos.
A entrada na Praça da Apoteose logo revela os três telões de LED com o clássico logo da banda -sim, aquele do "Master of Reality"- e o adolescente em mim se contém para não derramar as primeiras lágrimas. Nem mesmo o bom set de abertura da banda americana Rival Sons, e seu caldo que mistura hard rock e blues, Free e Led Zeppelin, é capaz de me distrair do fato que dali a instantes teríamos o Black Sabbath no palco.
E então as luzes se apagam. E uma animação nos telões termina com o logo do grupo em chamas. Tony Iommi, recuperado da leucemia que quase lhe tirou a vida, surge com aspecto mais saudável e empunhando sua mítica Gibson SG. A canção "Black Sabbath" abre o show como também inaugurou os próprios anos 70, encerrando a fantasia flower power sessentista e retratando a distopia pós-hippie.
Ozzy é um sobrevivente como Iggy Pop e, tal como o Iguana, epitomiza o próprio rock'n'roll. Geezer é pura elegância, um autêntico lorde inglês e um dos melhores contrabaixistas de sua época. Faltou Bill, que está vivo e bem na Califórnia, mas magoado com seus ex-companheiros. Tommy Cufletos, o substituto várias décadas mais jovem, é ótimo baterista, mas não tem o swing e a imprevisibilidade jazzística do mestre. Em se tratando de Sabbath, não se pode ter tudo e estamos mais do que no lucro.
Fiz de tudo para evitar spoilers e não li qualquer coisa sobre o set list da turnê de despedida. Queria estar aberto a surpresas, mas tive poucas. "After Forever" e "Dirty Women" foram as escolhas menos óbvias, mas o restante do repertório foi pinçado a dedo para agradar as plateias pelo mundo afora. Das treze canções executadas, nada menos que onze são extraídas dos três primeiros discos do Sabbath, que são também seus mais populares. Não há nada de álbuns colossais como "Sabbath Bloody Sabbath" e "Sabotage", e tampouco de "Never Say Die" ou "13". Uma pena, mas para isso criei o set list dos (meus) sonhos no final do post.
Se te falarem que Ozzy está desafinando em algumas músicas, acredite. Ele já fazia isso antes, até em estúdio. Se te disserem que a banda toca agora em ritmo mais cadenciado, também é verdade. Mas eles são os arquitetos do doom e Black Sabbath nunca teve a ver com velocidade. E ainda, se repetirem por aí que som ao vivo não tinha o volume esperado, olha, é bem possível que também seja verdade. Em 1992 eles também não tocaram tão alto assim.
Mas são detalhes. E irrelevantes perto do que é ver as faíscas que ainda resultam da química entre esses gigantes. A obra do grupo, não à toa, é uma mais influentes dos últimos 50 anos. Está em tudo que foi feito na música de forma rebelde desde 1970. E isso é muita coisa.
Obrigado por tudo, Sabbath.
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SET LIST Rio de Janeiro, 02/11/16
Black Sabbath
Fairies Wear Boots
After Forever
Into the Void
Snowblind
War Pigs
Behind the Wall of Sleep
Bassically/N.I.B.
Rat Salad
Iron Man
Dirty Women
Children of the Grave
Paranoid
SET LIST Caixa Preta
Black Sabbath
Sabbra Cadabra
Killing Yourself to Live
Sabbath Bloody Sabbath
Never Say Die
Planet Caravan
War Pigs
Hard Road
N.I.B
Iron Man
Supernaut
Symptom of the Universe
God is Dead?
Cornucopia
Snowblind
Paranoid
Após o incendiário show de Flag e TSOL em Amsterdã, Caixa Preta esteve por três dias em Londres à espera do Rebellion Festival, que acontece na cidade litorânea de Blackpool.
No cardápio londrino, rápida visita ao lendário 100 Club, uma espiada na Les Paul de Mick Jones -emoldurada numa loja em Oxford Street- e o tradicional café da manhã no Troubador, local do primeiro show de Bob Dylan na Inglaterra. Mas também alguns 'pints' de Guinness no pub The World's End, em Camden Town, que toca de Sepultura a Satyricon, e ainda uma esticada até Canary Wharf, onde funciona o The Grapes, taberna de propriedade do ator Ian McKellen e estabelecida no ano de 1583! Na última noite, jantar vegetariano na casa de Simon, guitarrista e vocalista da ótima banda punk Left For Dead.
A viagem de trem até Blackpool acontece num vagão repleto de punks e a chegada ao balneário turístico revela uma cidade tomada por gente com moicanos coloridos, jaquetas de couro e coturnos. E também muitos skinheads tradicionais de camisas Fred Perry, suspensórios e botas Doc Martens. Não falo de algumas dezenas ou centenas deles, mas de milhares.
A cidade recebe muito bem a fauna punk que lota seus bares e hotéis. Os rebeldes ingleses do fim dos anos 70 são agora respeitáveis senhores de 50 anos, com divisas suficientes para movimentar a economia de um destino turístico de verão.
O Rebellion Festival acontece anualmente no luxuoso complexo de entretenimento The Winter Gardens, construído no ano de 1896, e que possui 12 ambientes, incluindo o teatro The Opera House, com 3 mil lugares, e o suntuoso Empress Ballroom, um dos maiores salões de baile do mundo, com quase 1.200 metros quadrados e onde até os Beatles já se apresentaram. Ao longo de 120 anos de existência, o Winter Gardens trocou de mãos algumas vezes e chegou a ser comprado pela EMI no final da década de 1960.
O Rebellion Festival já faz parte do calendário de eventos de Blackpool e, em 2016, comemorou sua 20ª edição e os 40 anos da explosão punk. O banquete foi farto: cerca de 200 bandas e ainda palestras, entrevistas e shows acústicos. E pela primeira vez, o Rebellion teve shows ao ar livre numa arena em Tower Street. Resultado: toda a carga de 10 mil ingressos vendida antecipadamente. Um sucesso.
Com o programa do festival embaixo do braço e a pulseira de identificação que permite sair e entrar de todos os ambientes, montei minha agenda. Ainda no hotel, ouço ecos da música de CJ Ramone, que vem desde o palco aberto, e, logo às seis da tarde, depois de uma espiada nos shows de Drongos for Europe e da banda de ska Buster Shuffle, surge o primeiro impasse: rever o poderoso Flag ou assistir aos dementes americanos do Dwarves? É o tipo de dúvida que frita os miolos do público durante os quatro dias de festival.
O que há em comum em qualquer show é a quase completa ausência de smartphones filmando e fotografando as apresentações. O estafe do festival é grande e o controle de entrada e saída, sempre cuidadoso. Mas, assim como no Melkweg, ninguém passa pela revista de seguranças. Também não há patrocinadores e logotipos de empresas estampados em balões. E há uma feira com cerca de 20 estandes vendendo LPs, CDs, compactos, camisetas, livros, DVDs e materiais diversos de todas as bandas imagináveis. É para falir qualquer um.
No Opera House, aconteceram também entrevistas com figuras especialíssimas do naipe de Captain Sensible, Handsome Dick Manitoba, dos Dictators, e Dave Dictor, do MDC. Mas um certo Jello Biafra roubou a cena com um bate papo acontecido à meia-noite diante de um teatro lotado, e conduzido por John Robb, vocalista do Goldblade e baixista dos Membranes. Sabe aqueles discos de 'spoken word' que Biafra lançou aos montes nos anos 90? É aquilo, só que mais divertido e informal.
A seguir, um pouco de tudo que vimos no Rebellion 2016.
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QUINTA, 04 DE AGOSTO
FLAG - Foto: Dod Morrison
BUSTER SHUFFLE
Ska modesto com um vocalista hiperativo surrando um teclado e uma cantora negra metida numa camisa Fred Perry fazendo os backing vocals. Não deixaram saudades.
DRONGOS FOR EUROPE
Punk rock bem europeu, com público a favor e tocando no maior palco do festival. Tem tudo certinho e no lugar, mas falta alguma coisa.
FLAG
Depois do nocaute aos sentidos no Melkweg, eles atacam com o mesmo set-list, mas à luz do dia e sem o clima de baderna de Amsterdã. A experiência não é igualmente transcendental, mas o show teria sido bom mesmo se desse tudo errado. Flag é absolutamente sensacional.
TSOL
Jack Grisham feliz da vida outra vez, e a guitarra de Ron Emory com seus timbres belíssimos. A formação clássica do TSOL funciona às mil maravilhas no palco e não deveria se separar nunca mais.
DESCENDENTS
Começam com "Everything Sucks Today", minha favorita, e seguem com uma canção atrás da outra, a mil por hora, para um Empress Ballroom lotado até a última molécula de espaço. A qualidade de som, surpreendentemente, não faz jus às tripas que a banda entrega no palco. Exausto pela viagem e pelos shows anteriores, cochilo de pé, no meio da multidão, e depois reconheço que deveria ter optado por ver os Dickies, ao ar livre, banda que gosto mais.
THE VARUKERS
Os vi num fim de noite, em um palco
menor, e com o som alto a perfurar os tímpanos após uma maratona de
shows. Rat é figurinha carimbada do hardcore britânico e os Varukers têm
seu lugar cativo na história.
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SEXTA, 05 DE AGOSTO
BUZZCOCKS - Foto: Getty Images
REAGAN YOUTH
Banda reformada e com um vocalista com
pinta de ex-integrante do Mucky Pup. Fazem tudo certo, mas não empolgam.
O guitarrista, chefão do grupo, toca usando bandana e faz mil solos de
guitarra. Soa melhor nos discos gravados há 30 anos.
SUBHUMANS
Topei com o lendário vocalista Dick Lucas nos
corredores do hotel em que estava hospedado. Ele sempre muito louco e
acompanhado de gente ainda mais excêntrica. No palco, que é onde vale, o
Subhumans faz belíssimo show. São os mensageiros do anarcho-punk e
oferecem flertes com reggae e ska. Lucas ainda se apresentou no festival com o Citizen Fish.
DISCHARGE
Os inventores do 'D-Beat' voltaram a fazer o que sabem melhor. Com os irmãos Tezz e Bones nas guitarras, o viajandão "Rainy" Wainwright com seu baixo Flying-V e um novo vocalista, Jeff Janiak, eles soam como o Discharge que todo mundo adora. Um show preciso, matemático, e com aquela sonoridade pós-apocalíptica que influenciou dois milhões e meio de bandas.
ANTI-NOWHERE LEAGUE
Animal é um malandrão inglês que no palco parece ficar com três metros de altura. É o frontman punk por excelência. A seu lado, um guitarrista que se parece com a versão viking do Jared Leto. Tiveram a seu dispor um excelente som ao vivo e a multidão cantando tudo: "(We Are) The League", "Streets of London" e "For You". Fabuloso!
BUZZCOCKS
É como ver a Seleção Brasileira da Copa de
70. Um desfile de elegância. Pete Shelley velhinho, de barba branca e
encolhido pela idade, e Steve Diggle com energia juvenil, dando um show à
parte. Repertório poderoso e público emocionado. É Buzzcocks, afinal.
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SÁBADO, 06 DE AGOSTO
THE DAMNED - Foto: Vicky Pea
CHRON GEN
Ficaram parados por muitos e muitos anos.
Voltaram à ativa e gravaram novo disco, apenas o segundo da carreira e que sucede o cultuado "Chronic Generation", de 1982. O
trio mistura punk com hard rock à Billy Idol. Não é para todos, mas é
honesto.
JFA
Dave Peligro, baterista dos Dead Kennedys, cansou de usar uma camiseta dessa banda que pertence a uma geração clássica do hardcore americano. Ao vivo, fazem uma maçaroca sonora com teclados e que abre espaço para excentricidades, como o tema do desenho animado "Snoopy". Passo.
HARD SKIN
A banda oi! mais carismática do mundo toca no
pequeno palco Pavillion, do Winter Gardens, e faz a festa de um público
que canta junto cada refrão. O baixista e vocalista Fat Bob é um
fanfarrão que emenda uma série de piadas a cada intervalo. "We're just
brilliant!", diz ele em algum momento. E quem somos nós para discordar?
GBH
Em ótima forma, precisos, e com o vocalista
Collin aparentando uns 20 anos a menos que a idade. Tocaram clássicos
como "City Baby Attacked By Rats", "Alcohol", "Gimme Fire" e outras
mais. Por duas vezes convidam garotas de outras bandas a assumirem os
instrumentos.
THE DAMNED
O Cock Sparrer tocava para 5 mil pessoas no Empress Ballroom, num dos shows mais aguardados do festival, mas optei por ver o Damned. E agradeço por isso. Uma equipe de dez roadies monta o palco e a banda surge com um som cristalino. Dave Vanian, vampiresco, de casaco de couro, luvas e óculos escuros, e Captain Sensible com sua inseparável camisa rubro-negra listrada e a indefectível boina vermelha. Fazem um show gigante e que culmina com um final apoteótico: "Neat Neat Neat", "New Rose" e "Smash it Up". Épico!
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DOMINGO, 07 DE AGOSTO
Jello Biafra - Foto por: Dod Morrison
COCK SPARRER
Mais que uma banda, o Cock Sparrer é uma espécie de religião para punks e skinheads ingleses. Na ativa desde 1972, o grupo vive uma nova onda de popularidade desde a virada do milênio e suas apresentações ao vivo têm o aspecto de missas campais. O show extra, batizado de "hangover set", acontece na arena da Tower St e em lugar da banda Street Dogs, que cancelou sua ida ao festival. Mais de metade do clássico álbum "Shock Troops" no setlist e uma multidão de punhos em riste, cantando como se não houvesse amanhã. No fundo do palco, Jello Biafra assiste ao show sorridente e, à certa altura, é cumprimentado calorosamente pelo vocalista Colin McFaull.
DAG NASTY
Está aí um grupo que nunca imaginei que veria ao vivo. Há anos em estado de hibernação, a banda post-hardcore de Washington DC voltou surpreendentemente à ativa em 2015. E com sua formação original, que conta, entre outros, com o vocalista afro-americano Shawn Brown e o lendário guitarrista Brian Baker, de Minor Threat e Bad Religion. Show acima das expectativas e com momentos instrumentais intrincados que remetem ao grande Fugazi.
JELLO BIAFRA & TGSOM
Aproveitando a garoa e o frio que estragavam o verão de Blackpool no último dia de festival e que fazia o público se recolher nos intervalos dos shows, me posicionei na cara do palco para ver Jello Biafra & The Guantanamo School of Medicine. Artista de primeira grandeza, Jello comandou a banda numa apresentação arrebatadora. Repertório que mesclou canções atuais, clássicos dos Dead Kennedys e a bomba atômica "Forkboy", do Lard, que provocou abalos sísmicos no litoral inglês. Entremeado por discursos políticos corrosivos, o único 'stagedive' do festival e uma versão ácida de "Nazi Punks Fuck Off", que virou "Nazi Trumps Fuck Off".
STIFF LITTLE FINGERS
Coube à clássica banda de Ulster fechar o festival sob a garoa e o frio cortante do palco da Tower Street. Abriram o show com nada menos que "Wasted Life", canção-manifesto sobre o período mais turbulento da Irlanda do Norte e desfilaram seu poderoso repertório até o grand finale, com os hinos punks "Suspect Device" e a emocionante "Alternative Ulster".
Nas próximas semanas, salvo qualquer imprevisto, entra no ar, através da mais descolada web radio do Brasil, o programa que apresentarei semanalmente ao lado de outro velho ativista dos bons sons.
O piloto do programa já foi gravado e vai levar ao ar uma seleção musical de primeiríssima qualidade, com direito a bate papo e muita informação. Uma espécie de Caixa Preta com áudio.
Voltamos em breve com todas as informações sobre a estreia do programa. E também o prometido post especial sobre o Rebellion Festival 2016, anunciado na última coluna.
Fique atento!
Após algumas semanas em silêncio, Caixa Preta retorna com o primeiro de dois, quem sabe três, posts especialíssimos.
Tudo porque estivemos, entre 30 de julho e 14 de agosto, peregrinando da Holanda ao Reino Unido através de casas de shows, lojas de discos e culminando com os quatro dias e 200 bandas do Rebellion, maior festival punk do planeta, que acontece anualmente em Blackpool, Inglaterra.
Antes do festival, no entanto, um aquecimento para não esquecer no Melkweg, em Amsterdã. O lugar, aberto em 1970, onde funcionara uma antiga fábrica de laticínios, abriga duas salas de shows, cinema, teatro e espaço para exposições. E tem o melhor som ao vivo que este blog já presenciou. Qualidade de áudio absolutamente cristalina e bem equalizada. Não bastasse, o Melkweg é ainda belíssimo como exemplo de arquitetura e o público entra no espaço sem sequer passar pela revista de seguranças.
E na noite de 30 de julho, apresentam-se por lá nada menos que The Adolescents, TSOL e Flag. Uma trinca de bandas que é parte da história do hardcore/punk americano. Juntos, os grupos oferecem uma paleta sonora que recupera o espírito inventivo e anárquico de toda uma época.
Infelizmente chegamos a tempo de ver apenas o desfecho do show dos Adolescents, com a sensacional canção "Kids of the Black Hole". Mas assim que o TSOL subiu ao palco, com 3/4 de sua formação clássica, tudo valeu à pena. Um set inspiradíssimo e repertório que privilegia a obra da banda que antecede o famoso álbum "Change Today?" - sim, aquele do hit radiofônico "Flowers by the Door".
Jack Grisham, o vocalista, vestido de paletó e calça com estampas extravagantes, irradiava felicidade. Contou a loucura que é dividir o camarim com outros sujeitos lendários e que, ainda em 2016, fica intimidado diante do ícone Keith Morris. Bom de papo, disse que quem for a Los Angeles pode telefonar pra ele e combinar uma visita. "Basta procurar por Jack Grisham no catálogo telefônico. Sou eu! Digo isso há anos, em todos os shows, e até hoje apenas um fã me procurou. O nome dele era Antônio e ela era do Brasil...".
Grisham, com cabelos negros, olhos azuis e um pança proeminente que lembra o Elvis Presley da fase Las Vegas, revelou ainda o título do aguardado novo disco do TSOL: "The Trigger Complex".
No intervalo entre os shows, uma visita às banquinhas de merchandising das três bandas e um papo com os fãs holandeses. Um deles, chamado Tyson, com seus 20 e poucos de idade, nos mostra orgulhoso uma tatuagem do TSOL. "É a maior banda do mundo!".
Na volta, o Flag implode Amsterdã com um show absolutamente incendiário. Bombástico. Inesquecível. Coisa de outro planeta. Difícil acreditar que, capitaneado pelo chefe Greg Ginn, o Black Flag esteja hoje em dia vagando pelas sombras do Flag; superbanda que reúne Keith Morris, Dez Cadena, Chuck Dukowski, Bill Stevenson e um reforço de luxo na segunda guitarra: Stephen Egerton, do Descendents.
Dukowski rouba a cena com sua postura de palco e aquele visual clássico que conhecemos das icônicas fotos de Glen E. Friedman: camisa havaiana, calça colorida e tênis de skatista. O sujeito tem 62 anos e, de tanta entrega, parece que pode tombar a qualquer momento vítima de um ataque cardíaco fulminante.
O repertório do grupo traz bombas atômicas como "Jealous Again", "Police Story", "Wasted", "Fix Me", "Gimmie Gimmie Gimmie" e "Nervous Breakdown". Keith Morris, 61 anos, ostenta seus imensos dreadlocks e impõe respeito. À certa altura, tira onda com uma fã que sobe ao palco para tirar uma foto sua. "Você quer ser a estrela do Instagram, é isso?".
Em "Rise Above", os punks holandeses saem do corpo (vídeo abaixo). Quem está perto do caos é tragado pela turba. E se cair, como foi meu caso, não há problema: rapidamente os membros da baderna esticam as mãos para ajudar. Punk rock.
Rumo ao fim do show, Dez Cadena bota a guitarra de lado e assume os vocais em faixas como "American Waste" e "Six Pack". Morris retorna para fechar o set com a famosa versão de "Louie Louie". Deixam o palco como quem saiu das trincheiras.
Um show que precisa obrigatoriamente passar pelo Brasil. É experiência transformadora.
Melkweg, Amsterdã.
Há anos, muito anos, nem sei quantos, os Red Hot Chili Peppers tornaram-se uma das bandas de rock mais chatas do universo. Tirante uma ou outra boa canção, vinham oferecendo sempre mais do mesmo: baladas hippies para animar o luau de universitários maconheiros e faixas mais funkeadas, mas com os raps sem sentido de Anthony Kiedis e seus "scaba-dooba-California". Um horror.
Mas alguma coisa mudou em "The Getaway", segundo disco desde a segunda partida do guitarrista John Frusciante e o primeiro em 25 anos sem o produtor Rick Rubin, que apadrinhou a banda em "Mother's Milk", de 1989, e os ajudou a dominar as paradas a partir de 1991, com "Blood Sugar Sex Magik".
Produzido pelo competente Danger Mouse, um dos magos de estúdio desse milênio, e mixado por Nigel Godrich, conhecido por seu trabalho com o Radiohead, o 11º álbum do RHCP é quase um sopro de ar fresco.
Os arranjos são mais ricos e complexos, com uso de piano, backing vocals femininos e as bonitas texturas de guitarra de Josh Klinghoffer. E o melhor: as baladas de acampamento dão lugar agora a canções mais sóbrias e adultas, quase atmosféricas, como as dilacerantes "The Hunter" e "Dreams of a Samurai".
Kiedis também abdicou, para seu próprio bem, de boa parte dos tiques que o fizeram vítima de milhares de memes e trollagens pela Internet afora. Mostra que está com a voz em dia e maneirando nos "hey yos" e nos raps. Mas o cara não é de ferro e em menos de dois minutos de álbum, já manda sua primeira menção à dourada Califórnia. Faz parte.
"The Getaway" tem altos e baixos, mas é um disco uniforme e que acerta na maioria de suas escolhas. Oferece boas, e às vezes ótimas, canções pop ("Dark Necessities", "Go Robot" e a faixa título), e também temas que sinalizam para o distante passado do grupo, ainda que com nova roupagem. São os casos do funk torto "Detroit" e "This Ticonderoga", com guitarras pesadas e um refrão bobinho e inofensivo.
O toque autoral de Brian Burton (aka Danger Mouse) dá
as caras em cinco canções coescritas com o RHCP. Há toques de
psicodelia, trip hop e electronica; marcas registradas do produtor que
assinou, ao lado do italiano Daniele Luppi, um dos melhores álbuns dos
últimos anos: "Rome", de 2011.
Se sob a batuta de Rick Rubin os Chili Peppers formataram a porralouquice de sua música, convertendo-a num híbrido acessível para o consumo das massas, e chegando inevitavelmente à exaustão, eles agora parecem dispostos a se reinventar. E "The Getaway" é um bom começo.
No gelado outono argentino, as amplas calçadas ficam cobertas de folhas. Pelas paredes de Villa Crespo, vê-se uma miríade de inscrições em estêncil com frases libertárias e o onipresente escudo do Club Atlético Atlanta.
Na alta madrugada, os chamados 'maxi kioskos' vendem guloseimas e bebidas através do vão das grades. Salões de sinuca e confeitarias também têm seus boêmios tradicionais, porque, a despeito do frio e da garoa, há sempre quem se disponha a encostar no balcão para engolir uma empanada ou tomar uma 'pinta' de chope Quilmes.
-- 26 DE MAIO --
O funcionário do hotel interfona para avisar que nosso amigo, Martín Berriolo, encostou seu VW branco e nos aguarda para partir. Em quinze minutos, estamos no Club Social Y Deportivo La
Cultura Del Barrio. Descarregamos os instrumentos e uma mala repleta de material do Flicts.
Uma escadaria dá acesso ao primeiro andar, onde existem um bar e o espaço de shows. No segundo piso, funciona uma academia de boxe frequentada por garotos do bairro, punks e SHARPs. O Cultura Del Barrio, em sua primeira encarnação, tornou-se conhecido por reportagens em cadernos culturais e a fama atraiu indesejadas inspeções da prefeitura local. Desde então, e para fugir da burocracia, mudaram-se para a atual sede, cujo endereço não é divulgado sequer em cartazes de show. Quem conhece, conhece.
As bandas Scarponi e Aliento de Perro tocam para uma centena de pessoas e socializamos com frequentadores do 'club' ao sabor da ótima cerveja Imperial. Falamos de punk rock argentino ("O Flema é a melhor banda daqui. Não, espere, pensando bem é a pior..."), futebol ("Somos todos Atlanta, orgulho de Villa Crespo. O estádio é logo ali!") e teorias conspiratórias ("Dizem que Hitler morreu em Bariloche, há fortes indícios. Menghele foi o médico pessoal dele, antes de fugir para o Brasil").
Vamos até o palco estender o 'backdrop' do Flicts e descobrimos a existência de um misterioso fosso com três metros de profundidade, autêntica armadilha. Diante dele, um Marshall descansa apoiado sobre engradados de cerveja.
Fãs empunhando garrafas de vidro e cigarros acesos juntam-se numa roda de pogo quando o Flicts começa a tocar. Arthur (guitarra e voz), Jeferson (baixo) e Rafael (bateria) interagem com o público em bom espanhol. Ao final do set, ouvem um singular pedido de bis: "E dale, dale, Flicts, ô, ô, ô! E dale, dale, Flicts, ô, ô, ô!". Sim, você sabe.
Os vinis, CDs e camisetas do grupo logo evaporam da banquinha. Entornamos os últimos goles de Imperial e, de lá, vamos terminar a noite no Gauchito, um boteco que funciona até o fim da madrugada e serve o maior sanduíche de bife à milanesa conhecido pelo homem.
-- 27 DE MAIO --
"O NOFX já fez um show secreto por aqui", revela um
frequentador habitual do Salón Pueyrredon. "Havia tanta gente naquela noite que o público foi
ocupando as escadas e chegou até a calçada!".
O lugar, situado na Avenida Santa Fé, em Palermo, é um casarão de charme decadente, mistura de alguma antiga casa de tango com saloon de faroeste. O público aparece ali para beber, ver shows, jogar dardos e comprar livros e discos na lojinha do Salón.
A noite de sexta-feira, com seis bandas e shows começando por volta das onze, promete ser interminável. Anuncia-se a formação de nuvens de fumaça -a lei anti-fumo não pegou na Argentina- e ouvidos zunindo até a manhã seguinte. Do jeito que gostamos.
O Acto Fallido é o segundo a se apresentar. Quarteto com duas guitarras que trazem boas tramas instrumentais, uma garota no contrabaixo e competente baterista. O vocalista, bonachão, toca o tempo todo metido numa capa de chuva amarela que parece saída do episódio do Pica-Pau nas Cataratas do Niágara. Já o As de Monos, que tocou logo em seguida, é formado por músicos cinquentões e algum ex-integrante de Los Violadores, lendário grupo argentino do final dos anos 70. Apresentam uma parede de guitarras repletas de 'feedback' e que remetem ao americano TAD e grupos desta seara. Ótima surpresa.
O Flicts foi a quarta de seis bandas na programação e fez um set inspirado. A versão em espanhol de "Latinoamérica", içada do EP "Sonhos Corrompidos", emplacou entre os hermanos. À certa altura, um fã mais exaltado torceu o tornozelo na roda de pogo e saiu dali diretamente para o pronto socorro. Punk rock.
A congelante madrugada se esticou entre magníficos chopes artesanais e conversas com malucos argentinos e uruguaios. Uma fã que vira o Flicts na véspera, no Cultura Del Barrio, aproximou-se com perguntas bem específicas sobre certas passagens das letras. Outro, cobrou enfaticamente a reedição em CD do clássico álbum "Canções de Batalha".
-- 28 DE MAIO --
Seguranças de walkie-talkie abrem espaço entre o público para entrarmos no clube. Mesmo embaixo de garoa, filas já se formam na porta da Groove. Expectativa de casa cheia. Lá dentro, técnicos de som e funcionários andam de um lado para o outro e a experiência em nada lembra a das noites anteriores.
A produção providencia camarim exclusivo para o Flicts e geladeira repleta de Quilmes. "Se quiserem, mandamos vir uma pizzas", oferece Chino Biscotti, baterista do Cadena Perpetua, banda local muitíssimo popular. Antes deles, toca o veterano Bulldog, outro grupo bastante conhecido. Juntas, as bandas arrastam grandes plateias em todo o país.
Recebemos nos bastidores a visita de Jão, guitarrista do Ratos de Porão, recém-chegado à Argentina para uma turnê de oito shows. Engatamos uma prosa, mas o funcionário da casa interrompe e anuncia: "cinco minutos!". O Flicts leva suas armas para o palco e, sob ótimas condições técnicas, faz um show bastante consistente. Certa parcela do público abraça o som do grupo e aplaude bastante após cada canção. Estes mesmos fãs cercariam a banda horas mais tarde, na saída da Groove, atrás de CDs e informações. "!Concha de tu hermana!", grita um deles, entusiasmado, afirmando reconhecer o verdadeiro punk rock quando o escuta.
Por questões práticas, declinamos o convite de Jão para encontrar o restante do RDP em um restaurante, noutra parte da cidade, e ir de lá para o show do Nervosa. Permanecemos na Groove e, do mezanino, vemos a pista e os camarotes lotarem completamente com cerca de 2.000 pessoas. A plateia canta fervorosamente cada música de Bulldog e Cadena Perpetua, bandas que migraram do punk para o pop radiofônico e amealharam legiões de fãs. De nossa parte, trabalhamos com afinco para esgotar a cota de Quilmes.
Em um concorrido camarim de rock stars, com constante entra e sai de fãs, comemos e bebemos ao lado de integrantes de Cadena, Bulldog e também do guitarrista Sam, ex-Historia Del Crimen e atual Motorama. Do lado de fora, sob nevoeiro e baixíssimas temperaturas, uma última rodada ainda nos aguardava em um bar de Villa Crespo.
Flicts no Cultura Del Barrio
La Cultura Del Barrio
La Cultura Del Barrio
Salón Pueyrredon
Flicts no Salón Pueyrredon
Groove Palermo
Flicts na Groove
Fotos: Eduardo Abreu | Caixa Preta Blog
As de Monos, melhor banda que conhecemos em BsAs. Sub Pop: olho neles!
Se você é de São Paulo ou Rio de Janeiro, não pode perder as apresentações da veterana e espetacular banda suíça The Young Gods ao lado dos heróis do manguebit, Nação Zumbi. Os grupos se apresentam em 22/05 na Virada Cultural, em 26/05 no Cine Jóia, e no dia seguinte, um sábado, no Circo Voador.
O evento ocorre como parte das comemorações de 20 anos do já clássico álbum "Afrociberdelia", de Chico Science & Nação Zumbi, e está sendo tratado como uma prévia do que os dois grupos apresentarão, juntos, na próxima edição do famoso Festival de Montreaux, na Suíça.
Difícil imaginar uma combinação de artistas mais criativa e original. Os suíços, liderados por Franz Treichler, são tratados como um dos pilares do que se convencionou chamar industrial music. Sua obra faz intersecções com grupos tão diversos quanto Einstürzende Neubauten, Coil, Ministry, U2 e Killing Joke. Mas não apenas. Sua formação inicial também era inusitada: não havia baixista ou guitarrista; apenas o cantor Franz Treichler, o baterista Frank Bagnoud e o sampleador/programador Cesare Pizzi.
A estreia dos Young Gods em estúdio, ocorrida em 1987, trouxe um amálgama de música eletrônica e rock pesado, que, à época, não encontrava paralelos. Mesmo com o repertório em francês, o importante jornal inglês Melody Maker conferiu ao álbum, homônimo, o prêmio de disco do ano.
Do segundo lançamento em diante, o trio suíço esteve mais longe ou mais perto do rock em diversas ocasiões. Em "L'Eau Rouge", de 1989, que saiu no Brasil, em vinil, pela
extinta gravadora Stiletto, o grupo vai
da melancolia à agressividade sonora, de climas soturnos à música de cabaré. No mesmo ano, partem para um projeto completamente diverso: "The Young Gods Play Kurt Weill", um disco inteiro dedicado a regravações do compositor alemão Kurt Weill, autor de música para câmara e orquestra, e parceiro de Bertold Brecht na famosa "A Ópera dos Três Vinténs".
Ainda antes que Chico Science & Nação Zumbi começassem sua revolução no pop brasileiro, os Young Gods chegaram ao quarto disco de estúdio, adotando, pela primeira vez, o inglês em material autoral. E é do álbum "T.V. Sky", de 1992, a canção mais conhecida do grupo. "Skin Flowers", a reboque de um vídeo-clipe, foi seguidamente exibida por Fabio Massari em seu programa Lado B, na MTV Brasil.
Mesmo assim, os Young Gods nunca deslancharam comercialmente. São uma banda bastante singular, com uma propensão ao estranho, e mais alinhada à cena artística europeia e ao avant garde. Em 1994, quase tocaram no Brasil pela primeira vez. Estavam escalados para o festival BHRIF, em Belo Horizonte, mas cancelaram sua participação depois que as bases do disco "Only Heaven" foram acidentalmente apagadas no estúdio. Foi essa, ao menos, a história que se contou à época.
Nesse mesmo período, Chico Science & Nação Zumbi começam a sacodir a música brasileira com sua mistura original e cosmopolita. Tambores com guitarras, riffs de metal com maracatu, pitadas de hip hop e raggamuffin', e letras que conectavam o rico imaginário nordestino ao futuro digital. A reportagem que apresentou o manguebit ao Brasil foi escrita pelo então VJ Gastão Moreira e publicada na revista Mixer. Ali, descobrimos a quantidade de bandas egressas do Recife e a efervescência de sua cena musical.
O primeiro lançamento de CSNZ, "Da Lama Ao Caos", foi editado pelo selo
Chaos, da Sony, que apostava em novos grupos como Planet Hemp e Skank. O impacto foi enorme e Recife tornou-se, por algum momento, a equivalente brasileira de Seattle. Da capital fora do eixo saíram grupos como Mundo Livre S/A, Eddie, Jorge Cabeleira, Sheik Tosado e Devotos do Ódio.
"Afrociberdelia", de 1996, com seu CD em caixa translúcida cor de laranja e linguagem gráfica moderna, trouxe uma das canções mais marcantes do período. A releitura de "Maracatu Atômico", de Jorge Mautner, colocava o pop do Recife conectado ao que havia de mais descolado no planeta. A canção, não por acaso, tornou-se uma trilha marcante nos tempos gloriosos da MTV Brasil e, adequadamente, foi o último clipe exibido pela emissora, em 2013, antes de sair do ar.
Chico Science morreu no ano seguinte, em um acidente automobilístico, aos 30 anos de idade. O grupo seguiu sem ele e firmou-se como uma das grandes forças criativas do pop nacional. Os dois álbuns de CSNZ ganharam a chancela de medalhões da MPB e terminaram rapidamente içados à condição de clássicos. Em matéria especial da Rolling Stone, em 2007, ambos estão listados entre os 100 maiores da música brasileira. E não só: ocupam, respectivamente, a 13ª e a 18ª posições. Top 20, portanto.
Os Young Gods seguiram em frente e passearam pela ambient music, por frequências herdadas do trip hop e por viagens lisérgicas à moda dos anos 60. Encontraram, ao longo do caminho, uma alma gêmea capaz de compreender a singularidade de sua obra. Mike Patton, o prolífico vocalista do Faith No More, passou a editar os lançamentos do grupo nos EUA através de seu selo, Ipecac Records, e também apresentou-se ao vivo com eles. Em 2008, o trio veio finalmente ao Brasil e fez três apresentações históricas em São Paulo. Como nota curiosa, os shows deveriam alternar repertórios elétrico e acústico, mas, por limitações do SESC Pompeia, apenas os sets acústicos foram apresentados. Dizem que a banda ficou furiosa, mas, para o público, valeu -e muito- ter assistido à apresentação do belíssimo álbum "Knock On Wood". E é incrível como, ao vivo, mais até do que em estúdio, a voz de Franz Treichler se parece com a de Bono Vox!
Em 2016, você tem a chance de ver esse encontro nos palcos: The Young Gods e Nação Zumbi. Eu não perderia por nada.
Foi lançado há alguns dias, via Nuclear Blast, o álbum homônimo do Surgical Meth Machine, novo projeto de Al Jourgensen. Apesar dos rumores de sua aposentadoria, Uncle Al continua produzindo música com bastante frequência - lançou, de quatro anos pra cá, um disco de inéditas do Ministry e outro projeto, Buck Satan and The 666 Shooters, com o veteraníssimo Rick Nielsen, do Cheap Trick.
O disco do Surgical Meth Machine não é muito diferente de experiências sonoras já feitas por Jourgensen, especialmente com o próprio Ministry. Há muitas colagens, samplers, bateria eletrônica, barulho e uma ambiência apocalíptica bastante característica. É também um álbum debochado e que, nesse aspecto, lembra um pouco a irreverência do Revolting Cocks, outro de seus conhecidos projetos e que alcançou certa visibilidade pop com a escrachada regravação de "Do Ya Think I'm Sexy?", de Rod Stewart.
Na nova fornada de canções, se é que o termo se aplica, chama a atenção "I'm Invisible", faixa que encerra o disco. Nela, pode-se ouvir a voz limpa de Al Jourgensen, sem efeitos de estúdio, e que remete a um período perdido do Ministry. Quem conhece "With Simpathy", o primeiro trabalho do grupo, de 1983, sabe que nem sempre Uncle Al cantou de maneira cavernosa e com a voz soterrada por efeitos. Pelo contrário, o synthpop que ele hoje renega era música feita para rádios e pistas de dança; inspirada nas bandas inglesas da mesma vertente.
As mudanças na carreira desse cubano radicado nos EUA e nascido Alejandro Ramirez, dariam filme. Do já citado início, em que teve o luxo de arregimentar músicos top para sua banda de apoio e chegou a abrir um show para o Police na megaturnê do disco "Synchronicity", até as glórias do início dos anos 90, período em que o Ministry frequentou grandes festivais e teve clipes exibidos em alta rotação na MTV.
Al Jourgensen admite que o sucesso obtido na década de 1990, época que viu a última corrida do ouro das grandes gravadoras, teve lá seus efeitos. Se lambuzou com os orçamentos para entregar os discos do Ministry para a Sire -subsidiária da Warner- e caiu de cabeça numa vida de sexo, drogas e rock'n'roll sem limites e que remonta às histórias mais excêntricas dos anos 70. Usou todas as drogas conhecidas, de heroína a crack, e viu sua produção musical decair na mesma proporção.
Passou anos num vai e vem de lucidez, aparecendo em público em variados estados de sanidade e aspecto físico, e perdeu a colaboração do baixista e produtor Paul Barker, seu grande parceiro musical. O período que se seguiu, e que é conhecido como a fase de El Paso, dada a mudança de Jourgensen para o Texas, gerou discos que eram verdadeiros manifestos contra a administração George W. Bush. Dá pra dizer que Al ficou completamente obcecado pelo tema: em "Houses of the Molé" todas as faixas começam com a letra W e em "The Last Sucker" e "Rio Grande Blood", o ex-presidente republicano aparece nas capas em montagens bizarras.
O envelhecimento e a distância dos holofotes parecem ter levado Jourgensen a cultivar sua fama de louco e excêntrico como uma espécie de cartada final. Encheu o rosto de piercings subdermais, escreveu uma biografia em que conta histórias horripilantes sobre drogas e prostituição ("The Lost Gospels According to Al Jourgensen") e estrelou um documentário igualmente extremo e não indicado a espectadores mais sensíveis ("Fix: The Ministry Movie").
Em 2015, esteve no Brasil pela primeira vez em 35 anos de carreira e fez um show antológico com o Ministry. Trajando uma camisa com estampa de Che Guevara, promoveu um verdadeiro bombardeio sonoro no palco da Audio Club, em São Paulo, amplificado pelas projeções de imagens apocalípticas e anti-imperialistas. A repercussão do show foi tamanha que o Ministry terminou convidado a voltar ao Brasil no mesmo ano para apresentar-se no palco Sunset, do Rock in Rio.
Nas entrevistas de divulgação do novo trabalho, Uncle Al não comenta sobre a aposentadoria que vem adiando há tempos. Mas detona, com sua prosa divertida, o que sobrou da indústria fonográfica e brinca com o interesse da gravadora alemã Nuclear Blast: "Acham que vão ganhar dinheiro com essa velha carcaça". Por fim, revela, em outra excêntrica jogada de autopromoção, que a radiografia na capa do disco é de seu próprio rosto. De acordo com ele, os dentes implantados, incluindo aqueles de vampiro, foram resultado dos anos de abuso de drogas. "O crack e a heroína me deixaram banguela".
Para comemorar o Record Store Day, que acontece hoje, 16 de abril, recupero texto perdido de outra encarnação do Caixa Preta. Fica como homenagem a todas as lojas que mantêm viva a cultura do disco e também ao autor, Ronnie James Dio (1942-2010).
Ele está comigo há 30 anos. Perdido no meio
de outros tantos LPs e ausente há bastante tempo do meu relativamente
ativo toca-discos. E hoje resolvi dar-lhe uma chance. Enquanto a agulha desliza
pelos sulcos do vinil, lembranças do ginásio e de toda uma época vão saindo do baú das memórias.
Meu primeiro disco foi adquirido com economias e trocados de
viagens de ônibus, o famoso 5131-Praça da Sé, que me levava até o
colégio. Já havia alguns anos que gostava de rock. Era refém
dos poucos programas de clipes, o mais saudoso deles o Som Pop, da
TV Cultura, que vez ou outra exibia filminhos de bandas
de hard rock e heavy metal. Nada mais fascinante para um adolescente de
13 anos e que adorava o som de guitarras elétricas.
Mas numa noite de domingo qualquer, foi o eterno programa Fantástico quem
fez a surpresa: anunciaram para depois do intervalo um
"musical" do ex-vocalista do Black Sabbath. À época, o departamento de
jornalismo da emissora ainda não tinha aderido ao termo
video-clipe, mas para mim não fazia diferença: a simples menção ao nome
da banda sagrada fez meus olhos pularem das órbitas.
O locutor global anunciou "The Last in Line" como a ideia do cantor Ronnie James
Dio sobre o fim do mundo e terminou o texto com uma tradução livre do
título: "O Fim da Linha". O estrago estava feito. Imagens de um elevador
que despenca até o inferno, a trilha musical recheada de riffs e solos faíscantes e toda
aquela ideia de fim dos tempos me fascinaram. Lembre-se que era 1984 e
existia ali um componente de rebeldia em relação à ordem das coisas.
Para as FMs brasileiras, pré-Rock in Rio, a maior ousadia ainda era tocar coisas pavorosas como o grupo pop-rock Radio Taxi. E a TV, salvo o oásis do Som Pop, era ainda tão sem graça quanto hoje, embora com apenas cinco emissoras.
Da veiculação de "The Last in Line" no Fantástico até a compra do disco lá se foi quase um ano. Acumulei trocos
da cantina do colégio e os somei às moedinhas que sobravam das viagens de ônibus, que eu normalmente pagava com passe escolar. O que
faltava para adquirir o LP, provavelmente foi conquistado graças à
eterna generosidade maternal.
Com o dinheiro contado, lá fui
eu, a bordo do 5131, dessa vez até o ponto final, na Praça da Sé, atrás
de meu primeiro disco. A loja escolhida foi a filial da Rua 7
de Abril da outrora importante rede Museu do Disco. Garimpei em cada
casulo de vinil até me deparar com a capa em tons pastéis criada por Barry Jackson - o mesmo que assinara a arte do então recém-lançado "Afterburner", do ZZ Top. Naquele vinil estava não apenas a canção que
iluminou um final de domingo qualquer, mas também, e principalmente,
minha definitiva introdução aos prazeres do rock'n'roll.
Trinta anos depois, meu primeiro LP está girando no toca-discos. Orgulhoso, tenta disfarçar o efeito do tempo e deixa a agulha deslizar tranquila,
sem reproduzir qualquer chiado, talvez na esperança de que seja tocado
com mais frequência em minhas sessões nostálgicas.
O saudoso Ronnie James e seu guitarrista, o norte-irlandês Vivian Campbell, quebram tudo no clipe exibido para todo o Brasil em 1984
---
PS: Caso esteja se perguntando, sim, a imagem que abre o 'post' é do meu próprio LP. Repare no encarte consertado com durex. :)
Repercutiu hoje na Internet, de blogs a canais como o Noisey, da Vice, a agressão sofrida por uma fã durante show do conjunto pop-punk The Story So Far.
Aconteceu em Toronto, no Canadá, e o vídeo não é bonito de se ver (link no final do post). Em um rompante de imbecilidade e auto-indulgência, o vocalista Parker Cannon desferiu uma voadora nas costas de uma jovem que, sem qualquer noção de espaço, preparava-se para tirar uma 'selfie' sobre o palco. A solução do cantor, no entanto, extrapolou os limites do razoável e funcionou como uma estúpida demonstração de misoginia.
Impossível não lembrar como Ian MacKaye, cofundador do Minor Threat e artífice da cena straight edge, se comportava diante de inconvenientes durante os shows. Nas quatro ocasiões em que vi o Fugazi ao vivo, entre 1994 e 97, MacKaye interrompeu a apresentação em algum momento para encerrar a baderna de fãs em cima do palco. Dava um caprichado sermão e a banda logo emendava a canção de alerta "The Long Division".
Até hoje, não posso ouvir essa faixa do álbum "Steady Diet of Nothing", de 1991, e logo me recordo dessas ocorrências e da forma dura, mas educada, com que MacKaye resolvia suas questões. O palco para ele era sagrado e até mesmo o 'slam dancing', versão mais agressiva da roda de pogo, era censurado pelo grupo. O punk de Washington, DC não queria que prejudicassem o andamento dos shows e, muito menos, que ameaçassem a integridade física dos fãs mais pacatos.
Mas nem todo mundo é Ian MacKaye. E muitos têm seus momentos de Parker Cannon. Seria destempero? Comportamento irascível? Ou apenas um vacilo numa noite ruim?
Abaixo, três casos de punks norteamericanos que bateram em fãs diante da plateia. E só um deles tinha licença para isso.
>> BEN WEASEL (Screeching Weasel)
O líder da cultuada banda de Chicago não se satisfez em atacar apenas uma mulher durante show ocorrido no festival SXSW, em 2011 - bateu logo em duas! A primeira agressão teria ocorrido após uma integrante da plateia ter, repetidamente, espirrado um tipo de líquido no vocalista. A segunda, depois que outra mulher tentou intervir. A polêmica ganhou destaque na Spin e na Rolling Stone, e Ben "Weasel" Foster se explicou:
"Quero pedir desculpas ao dono do clube e à integrante do público (...). Ainda que suas ações estivessem forado meu controle, a reação lamentável é minha total responsabilidade.Quaisquer que sejamminhas opiniões sobre fãs que ultrapassam os limites, eugostaria de poder voltar atrás e lidar com aquilo da mesma forma com que fiz nos primeiros 60 minutos de show. Como não posso, um pedido de desculpas é tudo o que tenho e espero sinceramente que essas pessoas o aceitem (...). Como marido, pai e músico profissional, entendo que é meu dever assumir a responsabilidade de forma socialmente aceitável, e mais especialmente em face do confronto".
>> FAT MIKE (NOFX)
Durante um show realizado em Sidney, na Austrália, em 2014, o
guitarrista e vocalista da famosa banda californiana NOFX perdeu a
compostura. Fat Mike empurrou um fã identificado como Alexander Medak e
desferiu um pontapé em seu rosto.
No dia seguinte,
através do Twitter, Medak enviou uma mensagem para o músico juntamente
com uma foto de seu lábio inchado. "Obrigado pelo nocaute, Mike. Não
doeu muito. E desculpe por ter te assustado, mas os shows são um pouco
diferentes por aqui".
Fat Mike respondeu: "Me desculpe
também, Alex. Eu estava com uma dor terrível [no pescoço] durante toda a
noite. Quando você me agarrou, eu reagi defensivamente... e
ofensivamente. Se você for ao show na sexta-feira, te pago uma cerveja.
Só não a jogue em mim".
>> GG ALLIN (GG Allin & The Murder Junkies)
Para o maior terrorista do rock'n'roll, bater em membros da
plateia era o mínimo que podia acontecer durante os shows. O público que
o acompanhava praticamente pedia por isso. Muitas
vezes, Allin arrebentava a fuça de seus fãs. Em outras ocasiões, era espancando e terminava a noite sem dentes e com o braço
engessado.
GG Allin, nascido Jesus Christ Allin, passou
boa parte dos anos 80 e o comecinho dos 90 metido em confusões. Foi
preso, violou a condicional, ficou amigo do serial killer John Wayne
Gacy, o famoso "Palhaço Assassino", e terminou expulso de várias cidades
e casas de shows. Bateu em fãs de ambos os sexos, sem preconceito,
inclusive durante suas palestras niilistas.
O nativo de
New Hampshire, que morreu de overdose em 1993, aos 36 anos, nunca pediu
desculpas a ninguém. No entanto, uma de suas frases mais famosas pode
servir de explicação:
"Minha mente é uma metralhadora, meu corpo são as balas e o público é o alvo".
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Park Cannon age como cafajeste em Toronto:
Ben Weasel apela para a baixaria em Austin:
Fat Mike perde o juízo em Sidney:
GG Allin desce a porrada em todas as cidades
(Material NÃO recomendado para leitores mais sensíveis).
No último domingo, dia 10 de abril, revi, após mais de 20 anos, uma apresentação ao vivo de Max Cavalera. E o cenário não poderia ser mais diferente daquele em que conheci o Sepultura.
Comparar um show atual do Soulfly com os eventos de metal dos anos 80 é exercício quase antropológico. Primeiro, porque o valor atual dos ingressos seria completamente inacessível para o público de 30 anos atrás. O país mudou e a audiência de Max Cavalera também. O bom público que foi prestigiá-lo no domingo era formado majoritariamente por fãs de meia idade. Bem diferente dos garotos rebeldes do passado e que tinham no metal extremo uma válvula de escape para as agruras da adolescência.
Outra diferença que grita são as condições técnicas de ontem e hoje. A
Audio Club, que recebeu o Soulfly, tem ótima infraestrutura. É possivelmente a melhor casa de shows da cidade desde o fechamento do Via
Funchal, em 2012. Tem seguranças por todos os lados, sinalizando com laser aqueles que acendem um cigarro ou um baseado na escuridão. Cobram dez pratas por uma lata de cerveja e oferecem a infame opção de pista VIP, separando o público com uma cerca.
Já o Sepultura, que vi nos primórdios, tocava com equipamentos baratos e em locais improvisados. Estive em um show do grupo pela primeira vez em 1987, ocasião em que lançavam seu ótimo álbum "Schizophrenia". A apresentação aconteceu nas modestas dependências do Sindicato dos Aeroviários de São Paulo; um prédio de três andares próximo ao Aeroporto de Congonhas. Era parte de um festival chamado "The World's Thrash", que teve outras tantas bandas importantes da época. Em determinada altura, acredite, o evento foi paralisado porque o chimbal da bateria desapareceu. Tinha ido parar, por engano, no meio dos equipamentos da banda punk WCHC.
Em 2016, Max e seu Soulfly jogam como o craque veterano e acima do peso, o tipo que conhece os atalhos do campo e não precisa suar pra ganhar o jogo. É um tal de mandar a plateia pular, abrir a roda de pogo e bater palmas que não está no gibi. O líder da banda, ungido pela credibilidade do metal "old school", é venerado pelo público. Max pede, os fãs atendem. E sequer precisa tocar sua guitarra rítmica durante boa parte da apresentação.
Em 1987, o Sepultura era ainda aquele jogador revelação, vindo dos campos esburacados da várzea e que tinha fome de bola. Chamava a atenção por ser melhor e mais habilidoso que seus pares. Em seus shows, não recorria a truques pra ganhar a torcida. Estavam afiados e confiantes, turbinados por um repertório com o frescor e a novidade da época.
O público de metal atual já flexibilizou seus gostos musicais. Aceita, por exemplo, que Andreas Kisser toque em uma jam session com Junior Lima, o irmão da Sandy, ou que leve o Sepultura para se apresentar em um trio elétrico de carnaval. Na Audio Club, provou isso cantando junto o trechinho de "Polícia", dos Titãs, e o refrão de "Ponta de Lança Africano", de Jorge Ben Jor. Curtiu até uma espécie de reggae chapado, num dos melhores momentos do show.
O público do passado, radical até o caroço, arrancaria a banda do palco a tapa se fizesse concessões parecidas. Basta dizer que, no citado festival, o Sepultura, assim que subiu ao palco, foi recebido com uma chuva de papel picado. Era o recado da ala mais purista e que já andava desconfiada com os cabelos tingidos dos irmãos Cavalera, suas bermudas
floridas e a guinada para o thrash depois de despontarem como uma banda de death metal "from hell".
Na saída do show do Soulfly, neste domingo, às 23:30, ouvi elogios duvidosos a respeito de Max Cavalera. Enquanto se dirigiam para buscar seus automóveis, fãs falavam do vocalista como um velhinho casca grossa. Estavam, suponho, a valorizá-lo pelos serviços prestados. E talvez, de maneira benevolente, a aceitar que tenha se tornado um animador de festas movidas a covers, citações, pout-porris e velhos clássicos do Sepultura.
Em 1987, ao final do festival, com o chão do sindicato coberto por garrafas de cerveja e cacos de vidro, o público saiu para as ruas desertas da cidade como uma gangue egressa do filme "Warriors". Se espalharam pelas esquinas e pontos de ônibus abandonados às quatro horas da madrugada. Falavam de metal, das bandas mais obscuras e extremas que existiam. Alguns elogiavam a evolução do Sepultura. Outros, mais críticos e mordazes, lamentavam: "Estão ficando muito comerciais".
Trinta anos mudam tudo.
Em 2016, centenas de smartphones filmaram o show do Soulfly.
Não há
registro em vídeo do festival "The World's Thrash" (acima, pôster do
evento).