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Black Metal - Porque o diabo ainda é pop

No último dia 21 de julho, o termo "black metal" chegou aos trending topics mundiais do Twitter. Não percebi qualquer motivo para que tanta gente estivesse falando ao mesmo tempo sobre um dos gêneros musicais mais perversos já surgidos. Mas estavam.

Na semana seguinte, dia 26, como um sinal sacana de que o capiroto jamais deixou de ser popular e apenas se disfarçou sob outras peles, leio que uma organização chamada Satanic Temple inaugurou, em Detroit, uma bonita e provocadora estátua de Baphomet. Para quem ouviu metal underground na década de 80, o nome dessa divindade pagã adotada pelo Satanismo é relativamente conhecido. Somente no clássico álbum "Bonded by Blood", do Exodus, há três faixas em que o tal Baphomet é mencionado.

Vinde a mim as criancinhas
A estátua foi revelada diante de 700 presentes e virou notícia no mundo. Jex Blackmore, diretora da filial do Satanic Temple em Detroit, explica que o impressionante monumento em bronze, de quase três metros de altura, simboliza valores opostos ao de um polêmico monumento cristão instalado por um deputado na sede do governo de Oklahoma. Uma verdadeira peleja entre Deus e o Diabo na terra da Motown e do proto-punk.

Não há sinais que haja relação entre o Satanic Temple -que não se define como religião, mas como grupo de afinidade para céticos e libertários- e o submundo do rock. Ainda assim, percebe-se semelhanças na cruzada pela laicidade empreendida pelos templários norteamericanos e, antes deles, por alguns moleques rebeldes da Noruega. Porque foi ali, no país com o maior IDH do planeta, que o subgênero conhecido como black metal tornou-se um fenômeno sociológico.

O power trio Venom, de Newcastle, pode até ter batizado o gênero, mas quem o formatou, no sentido musical e estético, foram o suíço Hellhammer e o sueco Bathory. A Noruega, contudo, tomou para si o estilo com o surgimento de uma geração de bandas encabeçada por Mayhem, Darkthrone e Burzum. A cena, então pequena e obscura, terminou conhecida pela violência e o radicalismo. O suicídio de um músico, o assassinato de outro e a onda de incêndios criminosos contra igrejas chocou a Escandinávia.

Varg Vikernes, o diabo norueguês
No ótimo documentário "Until the Light Takes Us", de 2009,  tais acontecimentos são remontados com rigor. Varg Vikernes, do Burzum, é a figura central e mais polêmica do filme. Condenado pelo assassinato de Euronymous, integrante do Mayhem, Vikernes também é associado ao incêndio de três igrejas seculares e à tentativa de articular um atentado terrorista contra um enclave de esquerda chamado Blitz House (foi apanhado em sua casa com 150 quilos de explosivos). Após sua detenção, no entanto, os incêndios não cessaram. Dezenas de outras igrejas foram transformadas em cinzas por copy cats, confundindo a polícia e aterrorizando a população norueguesa.

Vikernes, que é bastante articulado e um tipo perigoso de modelo para adolescentes rebeldes, explica os ataques como sua maneira de restabelecer o paganismo original da Noruega. O circo midiático em torno de seu julgamento transformou-se em uma espécie de versão escandinava do caso OJ Simpson. A forma irresponsável como parte da imprensa pautou seu trabalho foi abordada em um documentário feito para a televisão em 1999 e intitulado "Satan Rides the Media".

Varg Vikernes ficou preso por 15 anos e durante o confinamento alinhou suas ideias com a da direita xenófoba europeia. Sua ideologia é uma mistureba de neo-nazismo, mitologia teutônica e paganismo, explicada em nada menos que dez livros. O terrorista norueguês Anders Behring Breivik, responsável pelo massacre de 77 pessoas que chocou o mundo em 2011, era admirador confesso de Vikernes. Chegou a lhe escrever cartas em que explicava seus pensamentos ultranacionalistas. Um bando de lunáticos, isso sim.

Diversas outras bandas continuam a se inspirar na versão de Satanismo que o black metal encampou. Na Noruega, por tudo que já foi dito, o fenômeno tornou-se parte da cultura popular. O duo Satyricon, remanescente da geração dos anos 90, assinou há alguns anos com a major Sony BMG e emplacou um disco de black metal em primeiro lugar na parada norueguesa  e em quinto na finlandesa. Já a banda brasileira de hardcore/punk Agrotóxico revelou que, ao desembarcar no país nórdico para alguns shows, foi questionada por oficiais da imigração se a música que faziam era black metal.

Com tanta exposição, esse subgênero maldito terminou, inevitavelmente, usurpado de seu significado original. O niilismo dos pioneiros do black metal foi reformatado por bandas que pularam nesse vagão à procura de sucesso. O inglês Cradle of Filth e o norueguês Dimmu Borgir, por exemplo, criaram suas versões gourmetizadas da música do diabo para consumo comercial. O documentarista canadense Sam Dunn, que fez filmes para Rush e Iron Maiden, estudou o assunto no oitavo episódio de sua série "Metal Evolution", produzido para a Internet após o fim do programa no canal VH1.

Assim, seja nos destaques do Twitter, na adoração dos góticos libertários do Satanic Temple ou nas manchetes de tabloides noruegueses, o diabo, em pleno século XXI, ainda tem algo de pop.

Assassinatos, suicídio e cerca de 50 igrejas incendiadas: esse impressionante documentário mostra os estragos promovidos em nome da besta

O competente Sam Dunn faz uma mapa do metal extremo e investiga suas mais cabulosas subdivisões

Uma reflexão sobre como o circo midiático transformou Varg Vikernes, do Burzum, em anti-herói nacional

Henry Rollins - O pioneiro punk multimídia

Nenhum personagem saído da cena punk ocupou tantos espaços quanto Henry Rollins. Antes de o rótulo "multimídia" se tornar surrado e até anacrônico, esse sujeito desafiou definições e estendeu sua influência através de discos, rádio, TV, livros, cinema e shows de stand-up.

Crescido em Washington, DC, meca do hardcore na costa oeste americana, Rollins integrou uma banda de pouco sucesso chamada S.O.A. (State of Alert) e, pra pagar as contas, foi gerente da sorveteria Häagen Dazs. Um de seus subordinados na loja era ninguém menos que Ian MacKaye, integrante do Minor Threat e que fundaria, anos depois, o revolucionário Fugazi.

Henry Rollins ficou conhecido por integrar o Black Flag, banda da qual era fã, e passou com eles por todo tipo de percalço. As turnês excruciantes do grupo liderado por Greg Ginn eram capazes de destruir psicologicamente qualquer ser humano. Os integrantes ganhavam pouquíssimo dinheiro, viviam esfomeados e com duas mudas de roupa na van. Cruzavam a América para tocar em um pulgueiro diferente a cada noite e, volta e meia, eram perseguidos pela polícia, que impedia a realização dos shows ou simplesmente os interrompia.


O vocalista retratou essa trajetória punk no ótimo livro "Get in the Van", publicado pela 2.13.61, sua própria editora (o nome é uma alusão a data de seu nascimento). Henry escreveria ainda outros livros, como "Black Coffee Blues", e publicaria também trabalhos de outros autores, como o famoso cantor e compositor australiano Nick Cave.

Mas o homem ficaria famoso de verdade com a Rollins Band, grupo que fundou após o fim do Black Flag. Aproveitando a febre da música alternativa, que no começo dos anos 90 alcançou o público de massa nos EUA, a Rollins Band emplacou pelo menos dois singles de sucesso: "Tearing" e "Liar". Chegaram a se apresentar ao vivo no Brasil, mais precisamente na praia de Santos, em ocasião de um festival patrocinado pela M2000, uma marca de tênis que sumiu da praça.

Durante esse show, Henry arrebentou o supercílio e terminou a apresentação completamente ensanguentado. Ele relata o caso em seu disco de spoken word "Think Thank", numa faixa chamada "Brazil". De acordo com o próprio, o público foi ao delírio ao vê-lo coberto de sangue, como se estivesse emulando uma performance de Alice Cooper, mas a dor era terrível.

Rollins lançou outros álbums de spoken word além de "Think Thank", resultado de suas turnês de stand-up que já cruzaram o mundo até Israel e a Austrália, seu país predileto. Nessas apresentações, o ex-vocalista do Black Flag conta "causos" hilários e destila sua visão de mundo corrosiva com muito bom humor.


O carisma e a sagacidade renderam fama ao sujeito. Henry Rollins participou de filmes -foi dirigido por David Lynch no espetacular "A Estrada Perdida"- e teve seu próprio programa de TV, em que entrevistou gente como Samuel L. Jackson e deu espaço para apresentações ao vivo de Manu Chao, Slayer e Peeping Tom.

Henry Rollins também é radialista e conduz um excelente programa na emissora KCRW.
Todas as segundas-feiras cumpro o ritual de abrir o site da rádio para ouvir, via streaming, a edição da véspera, transmitida em Los Angeles das dez à meia-noite. Atualmente no episódio nº 333, "Henry on KCRW" toca uma variedade incrível de música: de jazz africano a avant-garde japonês, de punk rock obscuro a clássicos dos anos 60 e 70.

Recentemente, tenho topado com vídeos e entrevistas de Rollins em minhas navegações pela Internet. Dia desses, por exemplo, vi seu reencontro com o louco e talentoso jornalista canadense Nardwuar. Como qualquer entrevista conduzida pelo intrépido réporter, há várias curiosidades pop reveladas e momentos de total surrealismo. Vale a pena ver as duas conversas entre Henry e Nardwuar, separadas por um intervalo de 13 anos.

Mas melhor ainda foi descobrir a interessantíssima participação de Rollins numa edição de 2001 do programa de Howard Stern. Durante uma hora de papo, em que o folclórico radialista trata o convidado com surpreendente parcimônia, Henry discorre sem censura sobre sua vida pessoal. Diz, por exemplo, que, embora adore crianças e mulheres, não consegue se imaginar começando uma família. "Com minhas viagens e o tipo de vida que levo, não quero ser aquele tipo de pai que só aparece de vez em quando. Não dá para manter um relacionamento nesses moldes. Optei por obedecer a um único mestre: a arte".

Também confessa que ganhou muito dinheiro com a música, mas nem de perto o suficiente para viver dele pelo resto da vida ("Por sorte, sou do tipo que adora trabalhar"). O vocalista-ator-escritor também é perguntado por um ouvinte sobre a trágica morte de seu amigo Joe Cole (leia aqui o texto que escrevi sobre o assunto). Ele conta que, à época, estava gravando "The End of Silence", aquele que se tornaria seu disco mais famoso. Durante o período de gravação, recebeu em casa uma visita de Rick Rubin, produtor do álbum, que chegou a bordo de um caríssimo Rolls-Royce. A visita espalhafatosa, conclui Rollins, deve ter despertado a atenção de bandidos na vizinhança não muito aprazível de Venice. E o resto é história.

Mas Howard Stern ainda arrisca uma pergunta: quer saber sobre a lenda de que Rollins guardara os miolos do amigo em uma Tupperware! E o entrevistado responde, com absoluta naturalidade: "Sim, é verdade. Fiz isso pois que não queria que os pais dele se deparassem com pedaços de cérebro por toda parte. Então, recolhi os miolos espalhados e os mantive num pote".


Howard Stern Show (2001)
Quase uma hora de papo em que Rollins fale sobre dieta, academia, U2, fama, dinheiro, mulheres e o assassinato de Joe Cole.


Nardwuar X Henry Rollins - Round 1 (1998)
Ou porque ele odiava Vancouver, sexo com stripper no Canadá, falsos trotes telefônicos para Mike Ness, do Social Distortion, o infame episódio punk do Saturday Night Live e os masters roubados de "Raw Power", dos Stooges.


Nardwuar X Henry Rollins - Round 2 (2011)